04 poemas de André Giusti

 





(Cícero Dias)





Os Vilella Prado e os Teles de Menezes

 

Quanta dor escondida

Em quanta lágrima no travesseiro

Quanta angústia mágoa frustração

abafadas na noite

pelo que é certo

pelo que é bom para todos.

 

Quanto marido insatisfeito

Quanta esposa infeliz e traída

Quanto filho drogado

Quanto tranquilizante para a filha;

 

Quanta bebida quanta droga quanta anfetamina

Quanta felicidade não vivida

Quanta vida renegada

Quanta felicidade! Quanta vida!

Quanto sofrimento ouvindo

“pra que essa palhaçada de terapia?”;

 

Quanto amor quanto beijo

Gozo e carícia

Que não passaram de vontade reprimida;

 

Quanto câncer depressão e suicídio

Porque o pai não deixava

Porque a mãe não queria

Porque o esposo não consentia

Porque a esposa reclamava

Porque na casa dela se condenava

Porque na dele não se admitia

Por causa dos filhos

Para não dar motivo à vizinhança

Para não dizerem da família;

 

Quanto economista engenheiro advogado

quanto burocrata inventado

No lugar natural de músico

Ator e bailarino.

 

Em nome dos negócios

De Deus da firma e da bíblia,

para que se mantenha

o bom nome na praça

o status nos círculos

a benção da igreja

e a ordem e o zelo

da moral estabelecida.

* 


Uma filha deste solo, mãe gentil

 

Maria Fidélis já teve alguma dignidade

Não era a ideal,

mas dava para andar de cabeça erguida,

para manter os olhos acima do chão.

 

Ela vendia paçoca no sinal

e pagava por um quarto escuro mofado fedido

onde morava de aluguel.

 

Mas tudo que nunca foi muito bom

piorou muito mais

do que o pior que Maria Fidélis poderia esperar.

 

Maria Fidélis não tem mais paçoca

nem quarto

nem cabeça erguida

nem olhar acima do chão.

 

Maria Fidélis pega osso no lixo

pra fazer sopa na invasão

cata miolo de pão

cata jornal

pras épocas de menstruação.

 

Ainda passa pelo sinal,

mas só levanta a cabeça

quando ele fecha

e sem dignidade sem força

estende o braço

em direção ao motorista da SUV importada

que sobe rápido o vidro

para não perder a notícia

sobre o ministro que

guarda dinheiro

no paraíso fiscal.

* 


21th century

 

Você precisa dar bom dia às plantas

você deveria cumprimentar os bichos

e abraçar as árvores

e conversar com as flores.

e se despedir das nuvens

sabendo que elas

não mais

estarão lá  do jeito que estão.

Você precisa acordar mais cedo

e tomar café direito

escolher com calma

a camisa a blusa o sapato a sandália

escutar as histórias do teu filho

as angústias da tua mulher

os silêncios do teu marido

olhar teu vizinho no rosto

e mais tarde

arranjar uma porta uma janela

em que possa pôr

de vez em quando

a cara os pés lá fora

e tentar ao menos

não enlouquecer

com toda essa

gigantesca merda

que arranjaram

enquanto a gente

tenta viver.

*


Poema fingidamente alegre para disfarce de poesia triste

 

Eu vou escrever um poema

que pareça alegre

à moça que acha triste

a minha poesia.

 

Um poema que a ela

soe contente,

embora eu lhe conheça

a verdadeira essência

e o real sentido.

 

Um poema que,

imbuído do consagrado

fingir de poeta,

fale de sol,

mesmo que eu saiba

seu significado de tempestade

e vendaval.

 

Um poema que para a moça seja dia claro,

ainda que eu o conceba

como madrugada que não alcança aurora.

 

Que a faça pensar em asa de gaivota

quando no fundo conto

de animal na jaula.

 

Que eu disfarce opressão

fazendo-a entender liberdade,

que ela perceba igualdade

quando para mim é ferida

de preconceito e discriminação.

 

Que a moça leia em meu poema

conversa alegre

de amigos em bar,

mãos de namorados em parque,

e que só eu saiba

que é canto de solidão e abandono.

 

Que a moça que acha

triste a minha poesia

acredite que eu falo de sorriso

e que jamais sequer desconfie

que meu poema trata de lágrimas

do título ao verso final.

*

 



André Giusti nasceu em maio de 1968 na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o final dos anos 90. Tem nove livros publicados entre contos, crônicas e poemas. O mais recente é a coletânea de poemas De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia, pela Editora Penalux. Possui três livros inéditos: As Filhas Moravam com Ele (Contos), A Ternura dos Ausentes (Poesia) e Só Vale a Pena se Houver Encanto (romance). Também é jornalista e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

Contatos andregiustim68@gmail.com e @andregiustim68



Variações: revista de literatura contemporânea 

I X Edição - Mais Brasil que nunca
Edição de Marcos Samuel Costa

2023



Comentários

  1. Poemas doídos, mas escritos com muita luz.

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  2. André Giusti sempre "cirúrgico".e contundente, poesia com compromisso maior de reflexão. Salve .

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