Sexta-feira santa de um Jesus caboco e outras crônicas de Priscila Vasques Castro Dantas

 




(Guy Veloso Sem título, 2006)


 

 

Sexta-feira santa de um Jesus caboco


Sexta-feira santa. Sonho um Jesus caboco, sentado com a gente, comendo tambaqui assado, com farinha e pimenta murupi, numa beirada de igarapé. Uma ruma de meninos, correndo pra lá e pra cá, barulhando a alegria do feriado e nós, conversando, ouvindo Jesus dizer das coisas que parecem óbvias, mas não são: “manos, cuidem uns dos outros, tá? Dividam o peixe, a farinha e tenham fé; tudo de ruim se esvai quando a gente tem amor e fé.”

Essas palavras ecoam em mim sem parar... “cuidem uns dos outros...tenham fé...” É, Jesus, nessa sexta aqui, que a gente chama de santa em tua homenagem, meu desejo pra todos nós é essa palavra tua que sonhei ouvir: “cuidem uns dos outros...tudo de ruim se esvai quando a gente tem amor e fé.” Tudo se esvai... amor... fé... O mundo se curaria e voltaria a respirar... e veríamos a luz...

 

 

Paneiros de amor


O ano eu não lembro exatamente. Eu e mamãe andávamos pela Beira; sempre era tempo de irmos ali pra tucumã, jambu, tucupi, às vezes goma novinha, que cheirava de longe. Temperos frescos, coloridos mil.

Paramos no boxe de farinha. Tinha de tudo que era tipo, cada uma mais bonita que a outra! Mamãe pede pra provar: joga um punhado tirado do medidor de alumínio nas mãos e, das mãos, joga pra boca, num gesto que só ela e o vovô Anísio sabem fazer. Eu, menina, fico parada, olhando aquilo... olhos brilhando... fascinação...

Até hoje esse gesto caboco, que mamãe e vovô tantas vezes repetiram perto de mim, me vem à memória. E até hoje eu não sei fazer igual. Vovô Anísio já se foi. Agora joga farinha na boca lá nos paneiros do Céu. A sua bença, vô! Um dia a gente come farinha juntos outra vez...

 

 

Andanças, cores, sabores


Dia de pagamento no Big BEA. Lá íamos nós com a mamãe. O banco lotado, claro. Nunca vi o Big BEA vazio. Cada uma de nós numa fila. “Quem chegar primeiro na boca do caixa, avisa!” Eu adorava aquela confusão! Sempre torcia pra ser aquela que ia gritar: “veeeeem, mãe, cheguei!”

Via aquele monte de gente falando, falando...achava tudo imenso...criança tem dessas coisas de achar tudo imenso...Saíamos. Mamãe com o dinheiro pouco muito bem guardado. Na saída, a recompensa: pastel com caldo de cana ali na frente do banco. Era dividido, é claro, mas eu amava mesmo assim. Comia bem devagarinho meu pedaço... até hoje amo o mistão de carne, queijo e ovo.

De lá, claro, rumávamos pra Beira. Andanças, compras. As sacolas carregadas até a parada do Garajão com uma felicidade que fazia até sumir o peso delas. Agora ia feliz, sentada “na janela” do ônibus, pegando vento e pensando as meninices próprias do tempo do eu-menina. É, tempo bom...tempo bom demais...


 



Priscila Vasques Castro Dantas - Doutora em Educação pelo PPGE/UFAM (2022). Mestra em Letras pelo PPGL/UFAM (2018). Licenciada em Letras pela UFAM (2006). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa (UFAM) e do Grupo de Estudos Subjetividades, Povos Amazônicos e Processos de Desenvolvimento Humano (UFAM). Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no PPGL/UFAM. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9460408881000132 E-mail: priscilavasques84@gmail.com


Variações: revista de literatura contemporânea 
I X Edição - Mais Brasil que nunca
Edição de Marcos Samuel Costa
2023

Comentários

  1. Esta revista, a cada dia, amplia,seus horizontes, desta feita e esta crônica de Priscila com as singularidades de uma Manaus deliciosamente narrada em afetos

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  2. Maravilhosa foi esta a sensação que senti ao ler cada crônica. Poder sentir o cheiro, o sabor e a emoção é como se fosse possível vivenciar cada momento relatado pela Dra. Priscila ou até mesmo voltar à infância, lembrar de memórias incríveis... momentos felizes. Gratidão pelas belas palavras.

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