Brinquedos inventados por Gutemberg Armando Diniz Guerra



Brinquedos inventados

por Gutemberg Armando Diniz Guerra¹


(Para Daniel da Rocha Leite)

    A globalização tem feito padronizarem-se os costumes nos quatro cantos desse redondo mundo. Pode-se ver crianças muito pobres, morando nas ruas, brincando com eletrônicos ou com artefatos cobiçados e usados por filhos de famílias abastadas. Produtos fabricados em paraísos fiscais ou em países cuja estatização mascarou o valor real dos produtos tem feito que muitos deles sejam acessíveis a todas as camadas sociais, inclusive o lumpem, por conta e ao custo da falta de criatividade que se via em outros tempos para suprir necessidades básicas ou supérfluas. O lumpem adquire esses artefatos, muitas vezes, no lixo dos ricos. Contradições postas, o mundo dos brinquedos sofreu muito com essa aparente modernidade.

Fui menino aprendendo a fazer balões para soltar nas festas de São João, a fazer arraias para soltar nos tempos ventilados, a inventar furapés com pedaços de ferro para riscar o chão molhado dos nossos períodos chuvosos, a tecer fios para fazer girar piões, a jogar bola de gude em cavidades feitas com o calcanhar no  barro amolecido pelas chuvas, a fabricar patinetes e carrinhos de rolimãs encontradas nos ferros velhos e lixos das oficinas mecânicas. Houvesse alguma encosta e papelões serviam de pranchas a nos permitir deslizar ladeira abaixo, sem controle senão o dos solados dos pés e as palmas das mãos como freios. Posso descrever em detalhes o que me vem na memória ao relatar cada uma dessas delícias da infância, dizendo como funcionavam e como foram banidas pela dureza do asfalto, pelas fiações elétricas que vieram se impor na paisagem, pelos apartamentos e condomínios com suas regras e leis, pelos senões que o progresso determinou fazendo sumir cada uma das possibilidades de ser criança daquele jeito e maneira.

Reaproveitávamos latas de óleo de cozinha, latas de leite e similares, em seus diversos formatos, cores, estampas e tamanhos para fazer carros e trens de forma que os puxávamos com um barbante ou arame pelas ruas, ou ainda fazíamos que servissem como suportes para pernas de pau, ou de lata, equilibrando-nos sobre elas, imitando as papagaiadas dos palhaços dos circos. Era comum que nos machucássemos com quedas ou ferimentos durante a fabricação ou primeiros ensaios desses artefatos circenses e com o sabor da autoria, mas havia sempre o mercurio cromo, o iodo e o mertiolate para nos curar as mazelas da arriscada e divertida vida infantil. Mais do que isso, havia as santas bocas das mães a dar beijinhos milagrosos e curar as dores de cada ousadia e traquinagem dos pequenos. 

O fato é que a energia brincante, que toda criança tem, era canalizada para a criatividade e riscos que os pais não conseguiriam jamais controlar, como até hoje não conseguem desgarrar os olhos dos jovens da hipnotizante telinha dos celulares, tabletes e computadores. 

A imprevisibilidade das crianças deixam o coração dos pais sempre em sobressalto, e a atenção redobrada porque elas são capazes de tudo e um pouco mais! Há os pais e mães que deixam as crianças experimentarem, acompanhando de longe, mas sempre com o coração na mão. As experiências juvenis são testes que envolvem dor e frustração com as quais o ser humano tem que lidar, sempre que vivenciam por si mesmos aquilo que é impossível transmitir com palavras e recomendações. O perigo, porém, está sempre à espreita e cada vez mais sofisticado em formas demoníacas de abordagem e comprometimento da formação do caráter de nossos jovens.

No tempo dos balões de São João não havia tantos postos de gasolina, nem tantas casas, nem tantos fios elétricos que pudessem ser incendiados por um deles. No tempo das arraias empinadas com linha encerada com vidro moído não havia tantas bicicletas e motos que pudessem correr os riscos de serem degolados os seus condutores e a probabilidade de acidentes era considerada menor do que a alegria que provocavam. Na realidade presente é mesmo impossível colocar a vida em risco.

Quanto ao jogo de fura pé ou  ferrinho, riscados no barro úmido das ruas descalças e sem betume nem cimento, tornou-se obsoleto. Há brinquedos que sujam menos e prendem, sequestram, raptam as crianças para o mundo de outras tecnologias. E o pião? Artefato perigoso antes que se lhe domine o girar sobre si mesmo em algum espaço aberto.

Cada brinquedo, inventado ou não pelos brincantes, traz em si a possibilidade de variações no seu uso, o que leva os pequenos a quebrar os fabricados pela indústria para descobrirem os segredos daquelas magias ali embutidas. Os ensinados pelos pais, com recomendações que evitem os riscos de ferimento, sofrem adaptações que os adultos não imaginariam. O mundo do brinquedo é o mundo da magia, do engenho, da criatividade e da heresia experimental. Não há autoridade capaz de impor obediência à imaginação excitada dos jovens. O que deve haver é conversa, muito diálogo e paciência, antes e depois dos avisos e tentativas de prevenções. O pior é que essas qualidades tem sido dilapidadas pela pressa que a tecnologia impõe, transformando em máquinas os humanos que não se dêem ao trabalho de refletir sobre o que são e como devem ser...



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¹Engenheiro agrônomo




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2023

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