Açougues - crônica de Gutemberg Armando Diniz Guerra
Açougues
As alterações
tecnológicas continuam a me provocar cada vez que entro em algum
estabelecimento, seja ele qual for. Em um açougue na Vila de Cuiarana, em
Salinópolis, partes de um porco penduradas em ganchos me pareciam um belo
quadro de pintor clássico dada a vivacidade das cores e contraste na paisagem
pretensamente urbana. Vísceras e frangos em um balcão revestido de azulejos
brancos estavam expostos aguardando os compradores. Olhei em toda o espaço do
açougue, todo ele revestido de azulejos brancos, procurando um cepo que, na
minha memória, todo estabelecimento dessa natureza tinha como básico para o
corte das partes ósseas dos animais abatidos, esquartejados, divididos,
retalhados. De imediato procurei o monte de ossos que, na minha infância, os
açougueiros deixavam de lado para ofertar aos fregueses mais humildes para que
dele se fizessem caldos. Nas minhas memórias essas partes eram dadas como
cortesia. Comentei com o dono do estabelecimento sobre essas minhas lembranças
e ele ficou escutando, talvez desconfiado de uma pechincha. Um funcionário
eliminava as pelancas de uma peça, juntando-as. Não vi gatos nem cães cobiçando
aquelas partes sem nobreza.
Não vi machado nem serra
manual e entendi, ao ouvir o barulho de um motor que as operações antes
executadas sem concurso da energia elétrica agora eram feitas sem o suor do
magarefe. Músculos, pelancas e partes consideradas menos nobres passam juntas
com outras em uma máquina de moer e vão compor o peso do que se pede em
pechincha.
Lembrei de açougues
parisienses em que os profissionais do ofício preparavam as peças
artisticamente e ao gosto dos fregueses que dispensavam tempo razoável para
explicar como desejavam a sua porção. Atendendo a pedido de um colega
conterrâneo que me visitava na cidade luz, fui a um especialista em carne de
equídeos para comprarmos e depois levarmos ao fogo uma iguaria da qual tínhamos
ouvido falar ser comum naquele país, mas que nenhum de nós dois tinha
experimentado. Sim, comemos carne de cavalo e achamos bom!
Meu pensamento se deslocou
ao Mercado de Carne do Ver o peso, em Belém, em que a estética do lugar é mais
procurada pelos turistas do que o exposto nos boxes com estruturas de ferro
fundido na Europa e inadequações evidentes para aquele tipo de oferta. A
tentativa de restauração ressaltou contradições entre um passado longínquo e as
exigências sanitárias da atualidade.
Para o cozidão de verduras o peso solicitado
por minha mãe era o chupa molho, termo dado à costela bovina cortada a machado,
no famoso cepo que sempre ficava em um canto do açougue. Outros pesos comuns em
nossas compras eram o patinho, o paulista, a chã de dentro e, raramente, um
filé mignon. Músculos moídos eram chamados de carne ralada, mas isso se fazia
em casa, em uma máquina manual que se fixava a uma velha escrivaninha de
jacarandá que serviu de quase tudo em nossa casa da Ribeira.
Mas voltando ao açougue e
aos açougueiros, estavam sempre com seus aventais sujos de sangue, grandes
facas sendo amoladas a cada corte, e as mãos sem luvas a manejar carnes e
vísceras de bovinos e suínos.
Hoje esses
estabelecimentos vêm desaparecendo nos grandes centros, transformados e
chamados de boutiques ou compondo sessões de supermercados e shopping centers,
com as ofertas em geral feitas em pacotes previamente tratados, pesados e
embalados com filmes plásticos transparentes para a apreciação dos
consumidores. Primam por uma distância entre vendedor e comprador e para que se
tenha um corte específico deve-se solicitar ao funcionário que apareça para que
o pedido seja feito.
Busquei em minha memória
imagens de açougueiros que vi atuando e lembrei que o pai de um querido colega
da Escola de Agronomia da Universidade Federal da Bahia, era açougueiro em
Feira de Santana. Veio-me ao espírito a intenção de dedicar essa crônica ao pai
desse colega, a quem tive a oportunidade de conhecer em vida e partilhar de sua
mesa em uma de minhas passagens na Princesa do Sertão Baiano. Feira de Santana
evoca uma feira de gado que ali existiu em épocas remotas. Fiquei duvidando se
fazia a homenagem ou não ao pai daquele que se tornou vegetariano, ainda não
tão radical como seu filho, esse sim, avesso completamente ao sacrifício dos
animais. Deixo a homenagem em suspenso, apenas na intenção, pois que por uma
razão evangélica, temos visto que a carne tem sido cada vez mais fraca em
nossas dietas de idosos e pretensiosos de uma vida politicamente correta.
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Engenheiro agrônomo
Variações: revista de literatura contemporânea
X Edição - Corpo e fala: intimidades
Edição de Marcos Samuel Costa
2023
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