Carurus - crônica de Gutemberg Armando Diniz Guerra

 

(Djanira)

Carurus

Gutemberg Armando Diniz Guerra*


       O mês de setembro tem, na Bahia, a marca do azeite de dendê a temperar a vida celebrada em carurus dedicados aos santos Cosme e Damião e ao agregado Doum por conta do sincretismo com as religiosidades africanas. Expressivamente no mês de setembro, expressamente no dia 27 desse mês mais que em qualquer dia do ano, se os agraciados e agradecidos forem nascidos nessa quadra e mais ainda se forem gêmeos, o caruru é ofertado aos familiares, amigos e a quem chegar para a celebração. Nessa onda, já degustei muitos carurus ao longo de minha vida, mas agora estou ficando na saudade, pois em Belém, onde moro, essa forma de celebração não ocorre como no ambiente baiano.

O prato é variado com a base de quiabo dando nome ao conjunto, mas também com suas porções de vatapá, milho branco, feijão fradinho, galinha, camarões secos e defumados, farofa amarela, arroz branco, pipocas, inhame, abóbora, acarajé, abará, pedaços de cana, rapadura. O tempero sempre tem o toque do dendê, do camarão, amendoim, castanha de caju e da pimenta, dando sabores especiais a essas iguarias.

Uma das festas me vem sempre associada com a derrota do Bahia para o Vitória nos idos dos anos 60 do século passado. Foi na casa de Deraldo Rabelo, colega de escola e vizinho de rua. Naquela noite, convidados pelo amigo, comemos o caruru e conhecemos pessoalmente Kleber Carioca, o carrasco do dia seguinte no BA x Vi com um gol que a torcida do Bahia invalidava por ter sido feito com o concurso da mão esquerda do atacante. A torcida do Vitória nega peremptoriamente o fato. Eu estava no estádio, de frente para o lance pois estava na arquibancada atrás das traves do Bahia. Lembro bem da cena, com as duas torcidas se levantando ao mesmo tempo: uma proclamando o gol, a outra negando veementemente o tento. Sofrimento eternizado! Mas o caruru estava bom e o mês era, com certeza, o de setembro!

Outros foram consumidos em Cruz das Almas, nos anos que por ali passei estudando para me tornar engenheiro agrônomo, entre 1974 e 1976. Uma das distrações era ficar na porta do alojamento, olhando para a cidade, espreitando algum foguete anunciando festejo. Ao ver o rojão subir, partíamos em direção de onde teria sido lançado o míssil, e acabávamos encontrando o local do aniversário. Antes era comum ter rezas, ou manifestações de incorporações de crianças em adultos. Os estudantes de Agronomia eram sempre muito bem recebidos e servidos com o prato de iguarias e licores, em que pontuava sempre o de jenipapo como um dos mais frequentes. Alguns de nossos colegas, mais animados, assumiam o protagonismo no samba de roda tocando violão, atabaques, pandeiros, timbaus e na tirada de versos, uns consagrados, outros de improviso. Havia os que pulavam no meio da roda e ...sapateavam, sambavam e requebravam... na animação da dança: “Cosme e Damião, sua casa cheira, cheira a cravo, rosa, cheira a flor de laranjeira!”

Comi carurus em comunidades rurais e e nas cidades de Alagoinhas,  Inhambupe..., São Felix, Cachoeira e em Salvador uns quantos na Pituba, Liberdade, Rio Vermelho, Itapuã, Vasco da Gama, Pau miúdo, IAPI, Acupe, São Caetano, Cosme de Farias, 2 de Julho, Graça e em locais de frequência de amigos e familiares.

Os mais recorrentes sempre foram os carurus de celebração nos aniversários de meu irmão Sérgio Guerra, uns quantos em casa mesmo, na Ribeira, depois nos lugares onde ele morou, dos Barris aos condomínios na Pituba, Barra Avenida, Sabino Silva e sei lá mais que cantos. Comandados os preparativos sempre por uma legião de senhoras devotas dos santos erês e meninos, sob a batuta das esposas que assumiam a obrigação com dedicação e alegria, a casa cheia e acolhedora sempre foi uma das mais animadas que pude experimentar, sempre. O número de pessoas das mais diversas origens e classes sociais, profissionais, políticas e culturais nos oportunizava encontros para muito além da gastronomia sagrada e da celebração da vida exitosa e cheia de graça desse irmão querido. 

Nas minhas observações sobre religiosidade popular, esse ofício de reunir pessoas em torno e por ocasião de um momento feliz me parece do mais intenso conteúdo gregário e espiritual do que significa o sagrado. Tudo o que une pode ser associado à raiz do conceito de religiosidade, e o que une com alegria e prazer me parece mais forte ainda, porque redime o homem da culpa e da vergonha de ser feliz e brilhar, fim maior de sua existência.

Pois então, meu povo amado, celebremos com alegria e gratidão a vida de nossos entes queridos, saciados de fome e sede, partilhando com quem possa o ser humano solidário com o que mais precioso temos nesse mundo: estar aqui, agora e até quando estivermos! Viva Cosme, Damião e Doum! E haja caruru!...


*Engenheiro agrônomo


                                           

                                       Variações: revista de literatura contemporânea 

X Edição - Corpo e fala: intimidades
Edição de Marcos Samuel Costa
2023

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