Bola de barbante - Gutemberg Armando Diniz Guerra





Bola de barbante


Gutemberg Armando Diniz Guerra*


A bola de futebol society que eu havia comprado para os meus filhos estourou os pontos dos gomos e ficou imprestável para os jogos. Embora enchesse, ficava muito irregular e leve para a brincadeira dos meninos. Na impossibilidade de costurar, colar ou dar uma solução que restaurasse os gomos, resolvi retirar a câmara. Constatei ser ela de material resistente e de muito boa qualidade, melhor do que a do que a envolvia. Fui ao borracheiro, pedi que enchesse aquela câmara e testasse para ver se estava furada. Não estava!

Passei em um mercadinho e comprei dois tubos de barbante feito de algodão branco. Fui para casa e comecei a fazer uma operação que era comum de ser vista pelos meus vizinhos da Ribeira, em Salvador. Jogava-se futebol na praia com uma bola feita de barbantes envolvendo uma câmara redonda. Enxuta a bola era de textura muito boa, mas se molhada e agregando grãos de areia, tornava-se pesada e áspera. Era difícil convencer aos jogadores a ficarem na barreira quando havia alguma falta a ser cobrada. O choque da bola no corpo era uma pancada forte e dolorosa. Era também difícil para os goleiros espalmar ou encaixar aquele bólido quando naquelas condições de incorporação de areia e água pelo barbante envolvente.

O custo da operação era baixo, pois os dois rolos de barbante custaram apenas cinco reais. A câmara era aquela mesma que estava sendo apresentada, da bola de futebol Society, feita na China. Consegui amarrar uma das pontas do barbante no pito e fui enrolando o fio naquele globo, o mais apertado que eu conseguia, e de forma a que ficasse o mais aderente possível ao balão e aos outros fios. Terminado o primeiro carretel de fios, testei a bola e vi que o caminho era aquele, mas deveria ter uma forma que fizesse os fios não soltarem após as sequencias de chutes que ela deveria suportar. Enrolei o segundo rolo de fio com alguma dificuldade. A ideia era que não ficasse aparente nenhuma parte da câmara que era preta e rugosa. Consegui um resultado razoável e fiquei orgulhoso. Meu filho começou a brincar com aquela pelota da qual nunca tinha visto uma parecida. Ela ricocheteava no chão, fazendo um barulho seco e firme. Alguns fios começaram a soltar e me dei conta de que havia algum segredo que eu não sabia. Pensei que se a levasse ao borracheiro e desse mais uma carga de ar, talvez fosse melhor. Saí com aquele globo como se fosse um troféu. Mostrei ao dono do mercadinho, a uns senhores que estavam nas proximidades da borracharia, ao borracheiro e todos admiravam e davam ideias de como fazer para prender os fios que soltavam. Todos fizeram referência a bolas feitas de meia preenchida com tecidos ou papel, mas ninguém manifestou ter conhecimento daquele tipo de tecnologia que eu mostrava. Como Cuiarana é uma comunidade de pescadores, tal como era a Ribeira da minha infância, imaginei que alguém pudesse ter alguma informação sobre como fazer aquele trançado enigmático. Ninguém nunca tinha visto aquilo. Admiravam minha obra imperfeita com curiosidade e espanto.

Lembrei de ter visto, ainda na minha infância, uma pessoa que fazia essa operação no meu bairro querido da Ribeira. Era um senhor jovem, sapateiro, jogador de futebol nas horas vagas e com um apelido que sugeria ter sido militar. Celso Batalha era um caboclo, forte, musculoso, cabelo crespo. Cordial e exercendo sua profissão em uma portinha no Largo da Madragoa, cheguei a vê-lo enrolando uma bola com um tipo de barbante usado para amarrar mercadorias nos armazéns de varejo e nas padarias. Os fios eram achatados, diferente do roliço que eu conseguira comprar. Talvez esse fosse um detalhe importante a ser considerado na montagem daquele artefato esportivo, mas isso eu não tinha mais como saber. Haveria sim, alguns segredos nessa operação aparentemente simples. Não era apenas enrolar o barbante na bola, deveria haver uma forma de trançá-lo para que não soltasse e se desfizesse, como estava acontecendo. Personagens daquela infância e adolescência foram aflorando na memória: Zé da Lama, Furi, Fred... A nenhum deles eu pude recorrer para desvendar o segredo de como enrolar uma bola de barbante.

Deixei a bola com o meu filho que se divertiu por um tempo, até que ela começou a se desfazer. Frustrado, aproveitei e desfiz toda a operação que me custara alguns minutos e muitas recordações. Respirei fundo e fiquei pensando em refazer tudo de novo, quem sabe com uma agulha de tecer redes de pesca ou algum outro equipamento que me permitisse chegar a um resultado melhor. Contive a respiração e a ansiedade e me dei por satisfeito com as recordações que aquela bola de barbante me trouxera...   


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           *Engenheiro agrônomo


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