Crônicas amorosas sobre sebos - Gutemberg Armando Diniz Guerra
Crônicas amorosas sobre sebos
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Engenheiro agrônomo
Antecipei a
doação da minha biblioteca pessoal para a Universidade mas alguns livros
ficaram grudados, como se visgo tivessem, na minha estante agora muito reduzida.
Dou-me conta de que há livros que moram muito mais do que na estante, habitam
meu coração e mexem profundamente com minha memória. Outros, mesmo doados como
gestos de afeto, permanecem encantando o nosso espírito. Apenas para ilustrar,
relato três casos nessa crônica sobre exemplares adquiridos em sebos.
O primeiro é o
de Rachel Carson, intitulado “Primavera silenciosa”, revolucionário
do ponto de vista do questionamento das relações do homem com a natureza e do
que seria a modernidade na agricultura do pós 2ª Guerra Mundial. Li primeiro em
uma versão em português quando militava no campo profissional, no final da
década de 1970. Era uma fotocópia que corria de mão em mão dos então
partidários do que se chamava na época de Agricultura Alternativa. Os direitos
autorais teriam sido comprados por uma grande empresa de fabricantes de
agrotóxicos e vetada a edição durante 20 anos, o que fazia da obra uma espécie
de livro proibido, dando um sabor ainda mais especial à leitura.
Em 1993 fui para a França na intenção de
fazer o doutorado e, no mesmo ano, visitei a Bélgica por uma articulação do Professor
Jean Hebette abrindo as portas de sua família. Fomos recebidos pelo casal Pierre
e Antoinette Hebette em Flavion e eles nos fizeram conhecer, entre outros
lugares, uma cidade muito interessante: Redu. Naquela comuna tinha em torno de
150 casas das quais a metade ou pouco mais delas se transformaram em sebos.
Tinha sido a alternativa que tinham encontrado para resistir economicamente ao
processo de desertificação do campo. Ficamos encantados e saímos a visitar
quantas pudemos naqueles dias. Por acaso, encontrei uma versão em francês,
publicada pela parisiense editora Plon, do livro da bióloga americana. Com uma
sobrecapa verde, Printemps silencieux fez que eu entrasse em
taquicardia. Peguei o livro e não acreditei no que via como preço. Paguei
rapidamente e saí da casa/loja abraçado com o exemplar proibido. Logo que pude,
em uma das passagens do Jean Hebette por Paris, lhe pedi que trouxesse o livro
para o Brasil, mas com o compromisso da parte dele de que, quando aqui
chegasse, ele me devolveria o dito cujo. Ao retornar do doutorado, Jean Hebette
me entregou o livro que eu guardava como uma espécie de talismã. Depois
descobri e comprei uma edição recente em inglês e finalmente uma última em
português. Acabou-se o encanto do livro e foram eles juntos para a biblioteca
universitária.
Outra história que posso contar com um
certo tom de paixão é a do roteiro do filme Smoke e Blue in the face,
de Paul Auster. Assisti o filme por recomendação de Marion Aubrè, uma
professora de Antropologia da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em
Paris. Depois de conhecer aquele filme, não parei de citar e utilizar em minhas
aulas de Epistemologia e Metodologia de pesquisa. O principal motivo era uma
passagem do filme em que o dono de uma tabacaria fotografa durante anos a mesma
esquina, no mesmo horário, na mesma posição e ângulo. Um dia ele mostra a um
amigo as imagens que ele coleciona e o amigo fica intrigado com aquela sequência
de fotos aparentemente iguais, iguais, todas iguais. O dono da tabacaria
explica que as fotos têm muitas diferenças entre elas: pode-se ver a mudança de
intensidade da luz nas diversas estações do ano, as pessoas que aparecem não
são as mesmas e, quando são, estão vestidas diferentemente em cada imagem. O
amigo repete e insiste que são todas iguais até o momento que identifica a sua saudosa
esposa em uma das imagens. Ela fora atingida naquele dia, pouco depois de ser
fotografada, por uma bala perdida em um tiroteio entre policiais e bandidos em
um assalto naquela rua. No momento em que ele vê a foto ele cai em si e vê que
as fotos não são iguais...
Encantado por esse filme que continha oito
estórias, soube, em Nova York, que se vendiam partituras de peças teatrais, de
músicas clássicas e roteiros de filmes. Comecei a procurar pelo roteiro de Smoke
nas principais livrarias de Manhatan, sem sucesso. Em uma delas soube que havia
uma livraria no Harlem que era especializada em literatura sobre filmes. Em uma
tarde, fui procurar essa livraria e a encontrei. Percorri todas as estantes do
estabelecimento procurando o título do filme e do diretor por ordem alfabética.
Não encontrei! O dono da livraria me perguntou o que eu procurava e eu disse!
Ele mesmo fez a busca nas estantes e em um monte de livros que estavam ainda
sem arrumação e nada encontrou. Afirmou que provavelmente ele não tinha, mas
que eu poderia continuar procurando nas estantes. Insisti e depois de um tempo
que não sei quantificar, finalmente, encontrei o livro. O dono da livraria
ficou a me olhar com espanto, cobrou o que estava anotado no livro e eu o
trouxe para a minha estante de preferidos até que julguei melhor doá-lo de
presente a quem possa fazer melhor proveito do que a minha simples e emocionada
contemplação.
Um terceiro fato que me vem sempre à
memória quando entro em sebos é a de um livro meu, Memória (in)certa da
Ribeira. Vários foram vendidos e doados. Os autografados nem sempre foram
feitos a pessoas conhecidas. O fato é que tenho o hábito de vendo livros meus
nos sebos, recupero-os a preços módicos que costumam ter e faço doação a amigos
que acaso não os tenha, ampliando assim o meu círculo de leitores,
principalmente entre pessoas mais próximas que não conhecem efetivamente do que
se trata a minha produção literária. Em um dia em que estava no centro de
Belém, percorri os sebos que por ali existem. Em um deles encontrei um exemplar
do livro de memórias de minha infância e adolescência na península itapagipana.
Estava dedicado e autografado. Reconheci a pessoa a quem eu doara o livro e o
momento exato em que fizera o gesto. Era uma jovem de família belemense que
estava passando dias no nosso sítio em Cuiarana. Sabendo-a amante da leitura,
ofereci o livro e pude vê-la lendo na rede atada na varanda e nos jardins de
onde estava hospedada naquele final de ano. Com o seu falecimento precoce,
soube que a família nuclear se desfez de seus pertences e os livros foram parar
nesse vendedor de livros usados. Levei o livro para casa e até hoje não
consegui doá-lo a mais ninguém.
Quero registrar ainda os sebos de rua,
como o da frente do Colégio Gentil Bittencourt, na Avenida Magalhães Barata.
Durante os horários comerciais, os livros se espraiam na calçada e o vendedor
fica ali monitorando os curiosos que acaso pretendam se transformar em
compradores. Há outro sebo dessa natureza, embora menor, na esquina da Rua
Barão de Igarapé miri com a José Bonifácio, bem em frente ao Mercado Municipal
do Guamá. São caixotes abertos e expostos para quem queira comprar algum
exemplar surrado para levar como seu.
Continuo amante de livros usados e
disponibilizados em livrarias para quem deles queira se apossar. Os de minha
autoria eu resgato como quem salva um filho abandonado ou um órfão perdido,
procurando alguém para lhe adotar e ler. Sinto uma certa tristeza ao percorrer
os sites de vendas virtuais e ver relíquias expostas e dispostas à venda.
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