Circos - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 


Henri Matisse 


Circos



Gutemberg Armando Diniz Guerra*




Uma bicicleta com uma aparelhagem de som anunciava o espetáculo naquele domingo próximo do Natal. Conforme já nos tinha dito um dos membros do elenco, em um encontro casual na véspera, sim, haveria o primeiro espetáculo na noite do dia seguinte. E no horário dito para começo, lá estávamos eu e o meu filho de 8 anos para assistir aqueles artistas ciganos. Era um grupo modesto, apesar do nome pomposo, pretensioso, glamoroso. A lona parecia nova e o circo bem montado sobre um terreno que fora apenas roçado e deixava ainda uma macega de capim pisado misturado com um solo arenoso escuro, poeirento. O cheiro era de feno. Os artistas eram de uma mesma família com 17 componentes e um empregado, justamente o palhaço que também fazia o trabalho dito de produção em vários números, arrumando o palco, puxando a corda para içar equipamentos, trapezistas e atletas dos variados números de acrobacias aéreas. Todos se envolviam em funções que iam da bilheteria à execução de malabarismos com bolas, garrafas, chapéus, monociclo, equilíbrio no arame, contorcionismo em trapézios, saltos, adivinhações e palhaçadas. No intervalo, vendiam-se maçãs do amor, batata frita, algodão doce, pastéis, pipocas e aperitivos industrializados.

Na plateia estava a humilde população do vilarejo, os filhos de comerciantes, o açougueiro, operários da construção civil e assalariados de serviços gerais com seus filhos e jovens das famílias do lugar.

Um operador controlava uma aparelhagem de som muito barulhenta para o ambiente restrito do circo, e repetia, no início, a cada noite, as mesmas frases, piadas e enunciados tentando a animação do público com um humor escrachado e deslocado em algumas passagens. _O lado mais animado vai ganhar um prêmio. O lado direito está ganhando! E não tinha ninguém no lado direito. As músicas variavam do repertório da Xuxa ao Meme do caixão.

O espetáculo da primeira noite começou com atraso de quase meia hora e o palhaço tentava espichar seus números para compensar essa idiossincrasia do pequeno grande circo.

Fomos aos espetáculos durante cinco noites. Na inauguração, naquele domingo, pouco mais de meia centena de pessoas. Nos dias seguintes em torno de 30 espectadores compunham o respeitável público. A performance dos malabaristas, trapezistas, homem pássaro, homem aranha e palhaços duraram em torno de uma hora, com um intervalo estrategicamente programado quase no final das apresentações para aumentar a renda do circo com a venda das iguarias.

Senti enorme nostalgia dos tempos de criança e fiquei a maldizer a tecnologia, principalmente pela sonorização excessiva em decibéis, a falta de propaganda durante o dia com palhaço e perna de pau nas ruas a chamar o público, a fraca difusão e deficiente publicidade com cartazes, faixas e outros recursos tradicionais, agora certamente substituídos pela mídia sofisticada e praticamente invisível.

Conversei com alguns membros da família circense nos intervalos e durante o dia. Alojados em barracas improvisadas, sem um veículo próprio sequer para o transporte, percorriam povoados e sedes municipais que fossem receptivas às suas práticas. Não contavam com apoio governamental, nem de personalidades isoladas, mas tinham conseguido algum patrocínio em forma de produtos como pães da padaria e alguma quantia em dinheiro de alguns comerciantes locais, em troca de uma publicidade declarada nas convocações por aparelhagem de som, menção nas mensagens no início, intervalo e final do espetáculo e alguns ingressos.

Nos últimos dias de estada no vilarejo de Cuiarana, houve dois espetáculos com a bilheteria liberada. Um por conta de ter havido um ex-prefeito que teria bancado a noite, a troco de proclamação de seu nome, apoio e declaração de gratidão pela publicidade do circo. Na noite seguinte haveria um outro político que faria o mesmo, mas por essas coisas das disputas provincianas, o humor e a disposição minguaram, possivelmente por conta de ter havido um adversário que capitalizara se adiantando no patrocínio de uma noite. Como tinha sido anunciado que haveria gratuidade naquela segunda noite, mas não se confirmando o apoio do político que acenara com essa possibilidade, o chefe da família circense resolveu manter a gratuidade liberando a bilheteria. 

Nessas últimas apresentações, assistimos piadas mais escrachadas e uma dançarina que deve ter atualizado o que em outros tempos e culturas deve ter sido a dança do ventre ou a rumba no picadeiro. A dançarina exibiu um frenético número de funk, com tremedeiras das ancas, nádegas, quadris, ventre e coluna vertebral, deixando o público boquiaberto com tamanho desempenho sensual e eletrizado. 

Soube alguns dados biográficos de um dos palhaços. Maranhense, já com a idade de 55 anos, nascera em um circo, filho de uma mulher que se amasiara com o seu pai e com ele vivera um romance durante seis anos. Com a separação, ele ficara com os avós no próprio circo, e aprendera alguns dos ofícios que lhe permitiram a estreia aos 16 anos como trapezista e a continuação na profissão em vários outros grupos, segundo ele percorrendo o país. Com o circo atual estava trabalhando há 15 anos, em papeis os mais diversos. Tinha uma cultura geral limitada à sua vida itinerante e sempre ligada ao universo de pequenas comunidades interioranas. Fala denotando pouca escolaridade embora com desenvoltura suficiente para o exercício de humor, o que assumiu depois de ter sofrido um acidente de trabalho que lhe tirou a visão de um dos olhos. Um cabo de aço partido ao ser tensionado lhe atingira o olho esquerdo, permanentemente avermelhado e inchado. Tentava há anos um tratamento eficaz pelo SUS. Atribuiu-se o papel de cobrar do elenco os treinamentos necessários para o bom desempenho no picadeiro. Queixava-se de que havia pessoas que não queriam trabalhar todas as noites ou que desdenhavam assumir papeis por ser filho ou neto do dono. Coisas de família! Por vias transversas, eu soube que o consumo de bebida alcóolica era elevado no grupo. 

  Após o incidente das noites gratuitas, o circo se desfez e partiu para uma outra freguesia, a pouco mais de 30 quilômetros de onde pudemos lhe assistir. Fiz algumas contas e fiquei imaginando a que sacrifícios se submetem esses artistas para sua sobrevivência e reprodução. Mais ainda, lembrando o que dizia Beth Carvalho em um de nossos encontros fora do país: Como maltratamos os nossos artistas! Apesar de tudo, eles continuam a manter os espetáculos, com apoio mínimo para o pão e para o circo... 



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*Engenheiro agrônomo


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