Resenha: Águas, casas, barcos e gentes - por Gutemberg Armando Diniz Guerra



LEITE, Daniel. Águas, casas, barcosce gentes. Contos escolhidos. Belém: Tempo editora, 2013. 36p. Il.


     Peguei para ler esses dois contos pensando que serviriam para acalentar meu filho mais novo, como sempre faço para facilitar seu adormecer, contando histórias de sua preferência, sempre sobre mim e sua mãe, antes dele chegar. É sua demanda mais frequente, mas ando a contrariá-lo, tentando fazê-lo gostar de histórias escritas. Comecei a ler para ele o primeiro dos dois contos, mas parei quando da narrativa do funeral do pai. Velado em casa, a cena me tocou tanto que temi avançar na leitura e findei por adotar e acatar a sugestão do pequeno, inventando ou tirando do baú da memória algum evento de viagem minha com a companheira em nossas quase quatro décadas de convivência.

No dia seguinte, sozinho em meu gabinete de trabalho retomei, calmamente, a leitura e constatei se tratar, sim, de apenas dois contos, densos e tocantes, se referindo sobretudo à relação de um menino com a mãe, embora assumindo o sentir falta do pai, o que o tornava sempre presente. A matéria prima do livro é a memória afetiva do Daniel da Rocha Leite, sempre contextualizada e materializada em lugares em que viveu, cenas que presenciou e guardou no coração, partilhando em seu exercício literário com uma estética encantadora. 

Estranhei desde o início o longo título, apressando-me a julgar tratar-se em uma dificuldade de síntese do autor, mas talvez por querer ressaltar que naqueles contos tinha aquilo tudo, águas, casas, barcos, gentes e muito mais. Sim, tem muito mais coisas como ervas, brasas, escadas, cheiros e sabores. Talvez coubesse, mesmo, no título, uns três pontinhos de reticências, esses que indicam que tem mais coisas não citadas, no silêncio que esta sinalização indica. O mais emblemático, quando terminei de ler, e que ficou latejando em mim, foi a pungente relação filial, ou a presença constante e serena da genitora. Se me perguntarem sobre uma palavra chave que eu pudesse sacar e retirar do livro, eu diria essa: mãe.

Li me identificando plenamente com o narrador e conhecendo melhor Dona Elísia, nome que ouvi do escritor amigo-irmão e confundi, várias vezes, por uma dificuldade auditiva que devo ter, e por outras razões ligadas à minha biografia e aos meus diálogos com Daniel Leite. Pensei ter escutado e até pronunciei Elisa, depois Elise e me dou conta agora em um dos contos, de que Elísia é o correto nome dela.

Ao ver o subtítulo pensei tratar-se de vários contos, mas ao me dedicar à leitura, contei apenas dois lindos, maravilhosos, admiráveis desfiar de afetos filiais como se fossem contas de um colar de pérolas a ornamentar ainda mais o que já conheço por ouvir falar dessa senhora, por esse filho que se faz cuidados diários do tempo que lhe sobra do trabalho obrigatório nas lides processuais em que labuta. Lendo o menino homem que Elísia gerou e criou quase sozinha, pois que ficou viúva ainda em pleno vigor físico, com quatro rebentos a cuidar, sinto ali uma floresta imensa de amor frutificando de todas as formas de vida que um bioma dessa natureza abriga e produz.

O livro é uma declaração de amor filial de uma beleza comovente, de uma sensibilidade elevada, de uma profundidade humana cativante. 

Os contos se intitulam “O endereço cremado” e “Sobre nomes de mães”. O primeiro fala da demanda da mãe por um braseiro que ela utiliza frequentemente como defumador para incensar a casa. O demandado responde, mas no texto há sempre a impressão de que a premência da genitora é maior do que a velocidade com que o fogo se atiça para fazer o papel sagrado de purificação do ambiente com a incineração de ervas, produção de magias e cheiros que espantam malefícios que acaso estejam no ar da habitação e dos atos. A casa precisa desses cuidados porque tem, além de salas, quartos, banheiro, dispensa, cozinha, porões e quintais, possíveis espíritos que não arredaram depois de suas vidas biológicas. 

O segundo, verifico estar em publicação anterior, no livro “Elas”. É “Sobre os nomes de mães”, e como eles tem significados fortes para os rebentos e a proteção que lhes dispensa. Ele enumera alguns nomes em ordem alfabética e menciona que “nesse mundo havia o tempo das ameaças de um vento encanado sobre frágeis pulmões”. Porém mais do que o vento “Havia o banho de chuva, a tarde intensa no quintal” que resultava em “lábios azuis tremendo, e dedos engelhados no final da tarde”. Cura vinha nas mãos da mãe e em sua autoridade a ministrar “cálice de vinho do Porto que descia, pela magrela barriga do magrelo menino, como um fogaréu líquido”. Ao que mais resume-se uma mãe do que pode dizer essa frase: “Havia uns olhos sobre mim e sobre os outros”? 

Ambos os contos nos fazem ficar mais atentos aos sentimentos que esse ser sublime nos desperta e que, no cotidiano, se perdem ou não se deixam perceber.

É livro para ser dado de presente embrulhado em papel e laço especiais, nos dias das mães, dos pais e ocasiões em que se possa manifestar carinho na sua mais intensa forma.



Gutemberg Armando Diniz Guerra

Engenheiro agrônomo


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