Espetaculares mortes em massa e mortes em massa sem espetáculo - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 

Cândido Portinari


Espetaculares mortes em massa e mortes em massa sem espetáculo.


Gutemberg Armando Diniz Guerra


Conflito, guerra, chacina, massacre, genocídio, holocausto são alguns termos usados para tratar de mortes em série e em grandes números de grupos étnicos ou diferenciados sob categorias diversas nos séculos XX e XXI, uns sob câmaras e câmeras, com mórbidos registros imagéticos, auditivos e textuais, guardados em arquivos públicos e privados, quando não difundidos ao vivo e em tempo real. Cada vez mais próximos e mais visíveis, perpetrados por governos de estados ou por civis, uns ofertados como espetáculos jornalísticos, políticos, humoristicamente sórdidos e masoquistas, mascarados de justiça e saneamento, insanamente. Horripilantes e a cada dia se espalham nos jornais, televisões, rádios, cinemas e redes sociais as mortes de negros, cristãos, pobres, homossexuais, mulheres, crianças, judeus, palestinos, ucranianos, africanos, nativos latino americanos do sul e do centro, opositores políticos, todas sem nenhuma justificativa mas todos com explicações que cheiram mal e beiram à loucura completa dos homens e dos poderes constituídos sob forte propaganda populista, midiática, algorítimica, insuportáveis à mínima lógica de humanidade.

Os tempos têm sido tristes e sangrentos em que pese haver regras e leis para pautar o comportamento humano, seja ele individual, seja ele de coletivos dominantes e pretensiosamente autônomos para dispor da vida e da morte dos seus pares. Dada a extensão de como as mortes ocorrem na modernidade, nos induzindo a questionar o próprio conceito de modernidade ou pós modernidade, a impressão é de que cada vez mais nos aproximamos da barbárie e da insanidade do ser humano. A contabilidade é mascarada para esconder mortes nas condições mais cruéis e sob absurdos julgamentos sumários e discriminatórios. Comparações são feitas principalmente em termos contábeis, como se as pessoas fossem apenas números, sendo que o parâmetro mais utilizado é o da Segunda Guerra Mundial quando foram eliminados, sistemática e intencionalmente, sem possibilidades de defesa, seis milhões de judeus, em que pese um saldo final do conflito ter sido em torno de 52 milhões de pessoas mortas, a maioria em combates muito desiguais. 

Há, porém outras formas de mortes por negação de direitos fundamentais como o da alimentação, dos cuidados médicos, de saneamento básico, de emprego, de instrução, de abrigo, de calefação e de vestimenta adequada. Muitas dessas milhões de vidas ceifadas não fazem parte do espetáculo midiático, mas ocorrem há muitos anos e escondem as desigualdades que se mantem como se fossem naturais ou por determinação divina. Não são! Há também mortes por doenças mentais que se avolumam e vem somar essa estatística macabra que alimenta manchetes de jornais e chamadas espetaculares de telejornais e redes sociais.

Estamos nos moldando à imagem de carrascos masoquistas e de expectadores de arenas como o coliseu e divertimentos bárbaros da antiguidade. Somos extensões de Calígulas e Neros contemplando suplícios, flagelações e extermínios com a naturalidade de monstros pervertidos e cínicos. Estamos assistindo o fim da espécie humana no que há de mais torpe e negativo, qual sejam as disputas desiguais, sem empatias, despidos de compaixão e solidariedade.

Como é que estamos nos tornando assim? Ouvíamos desde muito jovens estórias de mortes por motivos fúteis, imitávamos os gibis e brincávamos de matar índios e inimigos os mais diversos, todos inventados para nos fazer descarregar nossa maldade e fazê-la ainda mais acre. Das revistas em quadrinhos aos jogos eletrônicos mais elaborados, a violência ainda campeia, e nos acostumamos tanto a ela, deixando nossas crianças também se moldarem na belicosidade que vai depois ser assistida ao vivo, no cotidiano de cada um de nós, sem que a gente se espante, como se a gente tivesse dentro de um jogo virtual sem a gente se dar conta do tanto de maldade que vai ali. O pior de tudo é que não estamos em um jogo virtual, nem assistindo um filme de ficção, nem uma estória em quadrinhos! Os pobres que nos pedem comida nas ruas, nas portas dos supermercados, nos semáforos, são reais e fazem parte do nosso mundo de desigualdades. E a gente aprende a ignorá-los, a não os ver, a dizer não, a balançar a cabeça, a passar adiante como se eles não existissem, e voltar para casa, comer e dormir tranquilos, como se não tivéssemos visto nada de anormal. Sequer nos perguntamos porque eles estão nessa situação e tememos que assim estejam por alguma culpa nossa.

Recebemos milhares de mensagens denunciando mortes todos os dias, de todas as formas. Somos instados a reagir e o máximo que fazemos é somar nos abaixo assinados, contribuir com alguns trocados para fortalecer os formadores de opinião, e compartilhar vídeos e textos de protesto contra todas essas atrocidades. No fundo, estamos assistindo os espetáculos mais cruéis que possam existir, aceitando. Estou com medo dos monstros que estamos virando...

Comentários

  1. É verdade, Gutemberg Guerra. É a banalidade do mal, há muito tempo identificada pela Hannah Arendt. Lembro que uma vez fui numa loja de games para tentar comprar algum jogo educativo, mas ouvi do vendedor que tudo que eles tinham eram os jogos mortais e tantas formas de eliminação do outro. Ganha quem mata. E de esporte? Só futebol, onde os contendores eram os grandes times da Europa. O que nos resta é dialogar com nossos filhos e netos para que eles vejam o outro como um igual.

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