JÚLIA MAUÉS: SEMEADORA-SEMEADA, OU A ‘VOLTA A SI NA CHAMADA PARA A FELICIDADE’ - Paulo Nunes
JÚLIA MAUÉS:
SEMEADORA-SEMEADA, OU A ‘VOLTA A SI NA CHAMADA PARA A FELICIDADE’ - Paulo Nunes
A sublevação das mulheres
que produzem na diversificada geopoética do Pará, via suas escritas calcinantes
e provocativas (conforme tenho me esforçado em apontar em alguns ensaios), além
de significarem uma implosão de limites e de barreiras impostos pelo
patriarcado (predominante no campo de nossa literatura até a segunda metade do
século XX), incorporam, uma demonstração de refinado trato com as palavras,
matéria prima de ressignificação e existência de expressão e luta via o ofício
da literatura. Não estou a dizer que as herdeiras de Eneida, Adalcinda,
Dulcinea Paraense, Sultana Levy e Maria Lúcia Medeiros bordam poemas e prosas
de perfil ‘fru fru’, com o cor de rosa da superficialidade. Quase nunca o que
lemos na poesia feminina contemporânea brasileira (e o Pará está, de novo, numa
dessas pontas de lança) é filha do sublime.
Vamos ao assunto: recebi
o autógrafo de Habitar poeticamente a terra, o mais novo livro de Júlia Maués
(JM); Júlia, intelectual militante com e pela literatura, é professora
experimentada e poeta que publica bissextamente, muito menos, do que talvez,
sXus leitorXs gostariam. O livro de que trata, publicado pela Caravana editora,
neste 2023, tem quase 90 páginas, e foi editado num papel vergê que conforta os
olhos durante a leitura, algo importante para míopes como eu. Sim, os olhos
precisam ser acalmados, porque em se tratando de leitura de poemas produzidos
hoje nem sempre conseguimos banhar-nos no sentimento da calmaria. No Habitar
poeticamente..., por exemplo, muitos poemas de JM dizem-nos “segredos de
liquidificador”, para lembrar um verso de Cazuza, que nos são muito caros.
O primeiro dado que salta
aos olhos na escrita de JM (diga-se de passagem, filha de uma família de
escritores e escritoras de Abaetetuba) é o fato de que ela é uma
escritora-leitora, uma marca forte que faz sua literatura conversar com
autore(as) que a influenciam. Vamos a um leque diversificado de influências no
Habitar...: poetas do Oriente, os da Bíblia, ou ainda Álvaro de Campos, Caio
Fernando Abreu, Ana Cristina César, Benedito Nunes, Gogol, Age de Carvalho, Max
Martins, Garcia Lorca, Adélia Prado, e alguns outros e outras que estão fora de
meu alcance de leitura.
O mais forte traço deste
livro, creio eu, é a multiplicidade temática dos textos; essa não unicidade
gera a inconstância de estilo de escrita, em outras palavras, tanto enunciado
quanto enunciação são balizados pela inconstância. Explico: há textos escritos
em 1989, de feitura excessivamente prosaica (o que talvez – talvez! – pudesse
ser evitado), ao lado dos mais condensados, produzidos em 2022. Vê-se,
portanto, a diferença abissal entre os primeiros e os últimos textos. Se de um
lado isto compromete a harmonia da coletânea, de outro lado é válido porque
comprova que a autora, observadora e atenta, amadureceu nos seus 30 e mais anos
de escrita. Os tempos contemporâneos são enviesados e desarmonioso, como por
sinal atesta o livro de JM.
Embora os diálogos com a
literatura pop – um dos traços pulsantes do livro – seja uma constante (há
poemas que sussurram vozes da poesia beats e da literatura marginal
brasileira), do ponto de vista da concepção, Habitar Poeticamente a Terra é uma
coletânea marcada pela tensão entre a imanência e a permanência, entre a poesia
e a Filosofia (e seus campos afins de conhecimento), que têm acolhida no
conjunto de textos criados por JM. Ou seja: a professora-leitora interfere na
prática da criadora estética; destaco nesta linha o poema ‘Dêitico’ (p. 80). Há
ainda na concepção de alguns poemas a estratégia surrealista do recorte e
colagem, experimentação recorrente nos anos 70 e 80 na literatura produzida no
Brasil. Neste sentido, vale ler com atenção o poema ‘Mensagem para o interior’
(o meu preferido), em que a voz poética é estimulada a entrançar memória
pessoal (que toma forma na recordação lírica) com a rememoração social, típica
dos poemas narrativos presentes nesta antologia.
E já que falamos em
memória, este é pedra angular do livro, espécie de caixa de Pandora que a
autora preserva, irreversivelmente, como herança de sua lavra a repassa a
seus/suas leitores e leitoras. Por favor, não deixemos de ler ‘Aquilo’,
dedicado à Josi, irmã da autora, talvez uma interlocutora sutil de nossa poeta.
Família, vivência no interior, experiências da juventude, (des)acertos do
passado, são temas-satélite da antologia, que têm seu ápice em ‘Mãe’, poema
forte, intenso, enfim, necessário.
Uma coisa me chama ainda
a atenção, uma espécie de “interação interlinguagens” que se concretiza no
poema ‘Calendário Musical’, no qual as emoções da infância são ressignificadas
( os quintais, os programas de rádio tão presentes na vida dos nossos ribeirinhos);
‘Calendário Musical’ é um poema cinema[fo]tográfico e a mim lembra algumas
fotos de Luiz Braga, sobretudo aquela que estampou a capa de Altar em Chamas
(Civilização Brasileira, 1983), de Paes Loureiro, poeta de Abaetetuba,
conterrâneo da autora. Se esta associação arbitrária for viável, é possível se
dizer que a arte contemporânea não se satisfaz com regras coercitivas e bem
comportadas; ela – literatura – se
comunica consigo mesma e com outras artes, assim não é raro ver “relações
promiscuas” da poesia com a fotografia, a pintura, o cinema e a dança, por
exemplo.
Enfim, não sei se o
século XXI é das poetas, mas creio poder afirmar que em sua escrita, Júlia
Maués se refaz e procura seu espaço na geopoética do Pará. Quanto ao restante,
o tempo dirá, como, aliás, lembra um dos poemas da autora: “O tempo\ O lugar e
as coisas a esquadrinharem seus dias...” É isto: poesia para esquadrinhar
nossos dias.
Santa Maria de Belém do
Grão-Pará, 15 de fevereiro de 2024
Júlia Maués, tem uma ponta de lápis afiada nas palavras, recheadas de emoções e gosto agridoce na poética que nos habita. Nos acompanhamos há tempos em literatura decolando e degolando sobre e no tempo com a poesia nos olhos e sobre as superfícies do corpo e da terra. Evoé!
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