os punhos feridos das carícias - poemas de Roge Weslen

 

(Zito Raul in  São Paulo, Brasil, 2018)


eles buscam me ensinar o que é saudade

acham que com o exílio de meus

olhos não compreendi

a distância das coisas

a formulação do mistério

em tuas mãos

a crueldade das palavras ditas diariamente sem o afeto predestinado das montanhas

minhas constantes despedidas

os amigos conhecem o amor

conhecem as feridas

& espero que esse cansaço passe

& voltem os anos da alegre

mandinga corporal

o transe dos músculos em movimento numa

avenida vazia

numa cama desarrumada

a paixão exige a bagunça majoritária dos corpos

& da vida séria o riso estrombótico

do medo arrancado

a matéria viva do meu sangue teu

da minha voz tua

da tristeza rotineira peço licença temporária para amar

com brutalidade & encanto

o desatino o desvario

das pernas enlaçadas

        

        todas as coisas em estado puro.

 

//

 

o que fazer o que realizar como

mudar este céu obscurecido

de estigmas

como achar o jeito total de

olhar para a distância dessa 

laje

povoada pelos antigos

ainda busco abandonar

as estradas do interior 

as paragens que percorri Pará adentro

e quanto tempo perdi atrás do

sentido das coisas

quantas vidas ainda perderei

nesta busca pelo mítico pelo que urde

em mim o Coração Arcaico

quanto tempo estarei apagado

sem qualquer mão que acaricie 

o sentido dessa derrota

 

o que mais dói é esta capital sem

lendas 

que negou o uirapuru a matinta

pereira 

a luta cabana

 

meu filho mergulhará o mundo no igarapé de Doracy? de Vitalino? 

meus avós.

 

não sei do futuro do passado do presente

só sei o que está posto a mesa

esta guerra de signos

o suor do trabalho

a dança o legado 

da revolta cabana

aceso em minha vida

 

meu filho comerá estas mangas que caem na calçada da avenida nazaré?

 

sou uma interrogação boiando neste

rio

e sei que habita em mim ou sou eu

quem habito

as esquinas da cidade submersa

 

que talvez seja eu

 

corpo levado na preamar.

 

//

 

nos entreguemos ao ridículo

façamos o sexo canibal do submundo

contemos um ao outro

histórias da infância desgraçada

& cárceres em reformatórios imundos

por roubar fruta na feira & cachaça

no supermercado 

por fazer arruaça & poesia

nas calçadas de pombos & fezes de mendigos

cultivemos juntos o sonho xamã dos animais de rapina 

a indomável verve do sangue ancestral em nossa boca 

sejamos no mundo a mesma cicatriz

& a mesma cólera 

na pele branca dos governos

a luz apagada na varanda dos sem teto que cantam canções de rebeldia

os lobos uivando na praça da república incendiada

toquemos fogo em tudo 

em tudo o que é tradição & conservadorismo

pois tu sabe & e eu sei

somos a geração da ruína

 a estética dos incendiários é

a única que me interessa

maculemos cúmplices as salas de cinema de arte frequentada pela burguesia intelectual

& façamos de putaria & transgressão

o futuro

o amor dos jovens necessita de uma revolução

de outra forma

tanta rebeldia não daria em nada

& choraríamos juntos o passado de derrotas & hecatombes

mas se preciso meu amor

mandemos tudo à puta que pariu

& evaporemos num mundo desconhecido

amantes da destruição.

 

//

 

a costa de meu pai dói

doem suas mãos suas pernas

as pedras atravessadas em sua vesícula retinem

dói o passado de meu pai

doem seus erros de juventude

já esquecidos pelo tempo

dói sua visão que tenta enxergar as minúsculas letras do velho testamento

o futuro dói cada vez menos em nós

mas nada me diz meu pai

exceto certa ternura indispensável

ao silêncio que nos abisma um do outro

me lembro ainda de seu olhar cansado

rasgando rodovias estaduais

no caminhão da empresa

em que trabalhava

daquele caminhão restaram essas memórias de moleque calado

& então a empresa faliu & 

meu pai arranjou outro emprego

noutra empresa de

exploradores & explorados

unidos únicamente pela ilusão de igualdade

sonhava tão pequeno aquela época

queria também rasgar rodovias estaduais com um sorriso

triste de saudades de casa

quando abandonamos as cidades sem nome do interior

quando abandonamos o medo que a juventude desse tempo carrega

de amar & viver as coisas boas e más

que os livros escolares não nos ensinaram

 

//

 

morando na estranheza de

outros jeitos

de bocas que se abrem

num swing que só conheço distante

e em pouco tempo irei partir

novamente

para o futuro amargurado dos que

se perderam

para o destino de mágoas de

quem tentou ferir a vida 

e apenas deixou um vazio enorme no peito de quem o amou

como um personagem louco e desesperado de alguma

peça de sam shepard

como qualquer baihuno que belchior cantou

derrotado pelos sonhos

de uma vida não melhor

mas pelo menos livre

noutro lugar noutro sotaque

             noutras gentes

agora o olhar perfurado pela

leveza de quem cedo irá morrer

pelas mãos do próprio destino ou

apenas pelo destino das próprias escolhas

e o silêncio é aceitação agora

não só a resposta a tristeza

que nunca me deram

 

//

 

as páginas amareladas

desses livros na estante

 

concretos exílios do tempo

 

meus pés tocam um chão

de vidro, pedra e fogo

 

mas não dói

 

pois o que é real fere só

até certo ponto

 

a carne o pensamento o olhar

estas coisas amorfas

feitas do teu

abstrato

veneno mortal (as palavras

que dissemos no que

o amor desfigurou) da

pele impura nos fizemos

doentes inertes da amargura

que só o coração que bate e sangra

                                                         conhece

os punhos feridos das carícias

nojentas de nossos exílios

de lençóis marcados e

bocas saturadas de febre

um silêncio de amantes escarnecidos

e a última palavra decepada de

sentido, bem, uma profundidade

a mais, um imenso calor na voz

o coração do poeta é o último

ônibus da noite, vazio,

silencioso, que chia

bregas e bonitas

canções

o coração do poeta é um

lugar escuro, intocável

que só as pedras

escutam

que só o barro conhece.

 

//

 

 

 


Roge Weslen é poeta, 22 anos, morador da periferia de Belém do Pará. Autor do livro fantasma "ardências - primeiras paixões e desvarios" (appaloosa books, 2018), publicado em formato virtual. 


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