Rua dos amoladores - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 





Rua dos amoladores


Gutemberg Armando Diniz Guerra



Eu já tinha usado o serviço de amolar tesouras, alicates e facas em Belém, mas uma das últimas vezes foi depois que meu cunhado Evandro tinha me indicado um estabelecimento de um senhor que era conhecido por fazer esse tipo de trabalho, bem ali naquela rua estreita do bairro da Campina. O fato é que fui com o endereço certo, sabendo da dificuldade de estacionar naquela área, mas dei sorte e encontrei uma vaga quase em frente à portinha do amolador. 

Outra vez, por um outro tipo de demanda bem diferente, fui buscar um amolador na mesma rua. A demanda era a retirada de uma aliança da mãe que o filho de nove anos havia enfiado no dedo médio e não conseguia tirar. Com os esforços que fizemos, usando sabão e, mesmo com alguns cuidados, o dedo começou a inchar e avermelhar, levando-nos a uma tentativa de solução imediata antes que o inchaço do dedo se agravasse. Estacionei dessa vez e novamente em uma vaga providencial surgida na ruazinha. Entrei logo na oficina e mostrei o problema a um senhor grisalho que interrompeu o seu trabalho e me atendeu solícito, com uma lima na mão direita. O oficial tentou cortar o anel com um alicate curtinho, de ferro fundido, enegrecido, mas apesar de todo o esforço e habilidade de mestre, apenas marcou a joia. Ele fez bastante força, mas avaliou que não ia conseguir cumprir seu objetivo com aquela minúscula e frágil ferramenta. Pediu um tempo e saiu da oficina. Acompanhei o cidadão com o olhar e vi que ele adentrou uma outra portinha a uns 20 metros adiante. Voltou com uma ferramenta mais robusta e conseguiu executar o corte e a retirada do anel com aquele poderoso alicate que teve que buscar na oficina de um colega seu nas proximidades. Foi quando me dei conta de que havia outras chamadas para o mesmo tipo de serviço, em anúncios improvisados escritos nas paredes e placas dos modestíssimos estabelecimentos. Segundo o senhor que me atendeu naquela demanda inesperada, tinha mais de 40 anos que havia aquela concentração profissional naquela rua. Lembrei imediatamente de Lisboa e suas ruas homenageando os antigos artesãos, tanto quanto de Salvador com a sua Baixa dos Sapateiros, ou a Rua dos Ourives, no Rio de Janeiro.

Libertado o dedo médio do pequeno daquele suplício, senti um alívio imenso e perguntei ao mestre operário quanto me custaria o serviço. Ele prontamente declinou do pagamento, argumentando que não tinha gasto nada, a não ser alguns minutos. Pedi que considerasse a tranquilidade que ele me proporcionara, mas mesmo assim, ficou irredutível. Saiu de trás do balcão e foi devolver a ferramenta do seu colega vizinho, sem ver que eu deixara em cima de sua bancada a cédula mais graúda que eu tinha na carteira. Proferi umas palavras de agradecimento e bênção, e me dirigi para o carro do outro lado da rua. Voltei para casa com o menino sapeca e a aliança retorcida para ver o que a dona pretendia fazer com ela. Ao chegar em casa e me vi com nova tarefa: a recuperação do anel que testemunhara nossa união de 4 décadas, mas isso é outra história de envolvimento com outro gênero de profissional. 

Voltei dias depois à rua dos amoladores para situá-la melhor. As oficinas desse gênero são quatro, com os nomes dos profissionais expostos nos anúncios (Germano, Beto e Lindolfo), e estão localizados no trecho da Rua Frei Gil de Vila Nova entre a Ó de Almeida e a Senador Manoel Barata. Entrevistei cada um deles rapidamente, procurando saber mais informações sobre a rua e o tempo em que eles atuavam como profissionais ali, naquele trecho. O primeiro, mais jovem, me disse estar estabelecido ali há mais de 35 anos, declarando ter sido aprendiz do segundo. O segundo afirmou ter 47 anos e ser ele o decano naquela rua. Informou que a rua chegou a ter uma dezena de oficinas de amoladores em atividade, mas atualmente restavam apenas 4. A quarta, que eu não cheguei a identificar, estaria depois da esquina da Frei Gil com a rua Senador Manoel Barata. O terceiro disse ter mais de 40 anos de ofício e que acreditava ser o mais antigo naquele trecho. Todos me afirmaram que a rua era conhecida como a rua dos amoladores e que seus instrumentos mais representativos eram as limas, desfazendo minha ideia de que era o esmeril elétrico a protagonista desses oficiais.

Fiquei me perguntando porque Frei Gil de Vila Nova tinha a prerrogativa de nominar aquele logradouro se dele ali não havia traços nem presença que justificasse a homenagem. Para mim e para todos aqueles que tem facas, tesouras, alicates de unha, tesouras de poda, terçados e enxadas a afiar, não haverá melhor referência que a presença daquelas oficinas de amolar ferros e aços, além de conversas e curiosidades que costumam ser contadas pelos que exercem esse ofício.



*Encaminhada para a Revista Variações em 12/03/2024 às 12:23 horas.




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