Sextas feiras - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 


Sextas feiras

Gutemberg Armando Diniz Guerra

Engenheiro agrônomo


Os dias da semana têm significados diversos e cada um com a sua densidade histórica alterando-se ou se mantendo e intensificando permanentemente. Cantam-se com mais frequência os sábados e domingos e execram-se os outros dias, em geral dedicados ao trabalho, em particular a segunda feira, quando no mundo ocidental, ele se exerce iniciando as jornadas. Já as sextas feiras têm sido esperadas e celebradas com festas e alívio, bebidas e toda sorte de orgia embora ela tivesse e tenha outros significados no universo cristão. Delas guardo alguns instantes inculcados desde as vivências familiares na infância, em Salvador, na Bahia. Quando vejo rituais ainda presentes em confissões religiosas e expressões que se fixaram em comunidades tradicionais ou nas celebrações que se perpetuaram no calendário, revivo e reativo lembranças muito fortes remontando ao passado familiar.

A primeira sexta-feira do ano tinha e ainda mantem um significado especialmente religioso, com idas obrigatórias à sagrada colina em que se encontra o templo dedicado a Nosso Senhor do Bonfim. A influência africana associando Jesus Cristo a Oxalá fez que o se vestir de branco - cor da divindade africana, mas também com significados positivos entre os cristãos - se impusesse no subconsciente coletivo, de maneiras que praticamente toda a cidade se traja dessa tonalidade neste dia de primeira sexta-feira do ano, como em todas as outras sextas de todas as semanas que o completam. Na iconografia familiar que tenho na memória, uma fotografia feita no largo do alto da colina em que se encontra a Igreja do Bonfim, estamos juntos com quase toda a família, depois de ter ido pedir graças para o ano que começava. Apenas uma irmã, recém-casada e em viagem, não comparecera naquela sexta-feira emblemática. Não estávamos todos de branco, pois que a predominância católica em nossa família absorvera pouco, ou pelo menos não assumia essa prática sincrética.

Todas as sextas feiras da paixão, quando meus pais ainda eram vivos e tinham seus filhos ainda em casa e sob sua tutela, tínhamos uma grande reunião na hora do almoço. Embora houvesse o pretexto da penitencia dos pecados do ano anterior e o pedido de perdão aos pais pelos maus feitos até então, a refeição era feita com muita comida à base de peixes e frutos do mar, vinho tinto e um momento de prece muito contrita. Minha mãe proferia um solene pedido de perdão a Deus, por toda a família reunida, rezando-se o credo, um pai nosso e uma ave-maria acompanhados de um kirie, após o que cada um tomava a benção e pedia perdão aos pais. Durante os dias da semana que antecediam àquela sexta feira, nenhuma música era ouvida, todas as imagens de santos e espelhos eram cobertas com pano roxo, e evitavam-se vozes altas e palavrões.

A marca penitencial das sextas feiras se estendia por todo o ano. Era o dia em que fazíamos feira, acompanhando minha mãe, a pés, para comprar peixe, coentro, cebolinha, hortelã, batatas, cenouras, repolho... Em casa de nossos pais, em nenhum desses dias do ano comíamos carne, nem cortávamos unha, nem cabelos, nem se fazia varrição de casa, sempre lembrando a paixão e morte de Jesus Cristo. Durante muito tempo, já adulto, vesti branco inconscientemente, acompanhando a religiosidade sincrética da cidade de Salvador, mesmo quando fora dela, em minhas andanças e moradias em outros lugares do mundo. Além do branco, e estudando um pouco sobre identidade, aprendi o quanto a cor amarelo no azeite de dendê e na farofa, tanto quanto o vermelho e o azul nas vestimentas evocam entidades afro, marcas da cultura baiana. Sei também que a feira dos Caxixis, em Nazaré das Farinhas, na Bahia, tinha fama por conta das rodas de samba em plena sexta feira da paixão, prática associada à venda de artesanato de barro em miniaturas, histórica naquela localidade.

Apenas para registro e reflexão, alguma semelhança com o salvador do mundo haverá de ter o personagem nominado com o dia da semana em que foi salvo de ser sacrificado aquele nativo.

Os tempos mudaram e ao invés de contrição e culpa, as sextas feiras são saudadas com danças, gritos de liberdade, bebidas e com um verbo que se impõe para anunciar que a semana de jornadas de trabalho acabou e que se inicia um tempo de folga, de farra, de celebração da alegria. Sextou! Não é exatamente um mini-carnaval, vez que os dias que seguem são de descontração e em que não há proibições nem imposições de oração e jejum principalmente para a juventude que está mais para práticas pagãs do que religiosas ancoradas no judaísmo, cristianismo ou qualquer outra fé monoteísta. O fato constatado é que muito mudou nessas últimas cinco décadas...

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