vó de umbigo - Anum Costa
(Paul Klee)
vó de umbigo
vó quelé nunca precisou abrir um
livro para aprender a amar. nascera com o dom, se amor for isso. simples como
quando me ensinou a fazer rapé. eu a procurei em plena curiosidade para saber
como se dava a alquimia. uma frigideira, uma colher, o fumo do tabaco e voilá:
o pozinho mágico do espirro estava pronto. era viciante, sim, como conseguem
ser a internet e os antidepressivos dos quais ela, em alguma alegria que nunca
acessei, sequer precisava. com ela aprendi a fazer o óleo de côco, a extraí-lo,
na verdade. suas magias eram infinitas. o mesmo com o corante de urucum, o
pilar sucessivo a tingir as mãos de óleo carmim e o coração em rubro afeto. sem
saber ler, era exímia professora, uma mestra.
lembro dela ao meu lado, a me
assistir como a uma de suas novelas das seis prediletas, vendo meus desenhos
tomando forma, quase sempre feminina, sobre as folhas pautadas de cadernos
herdados das irmãs mais velhas. abismava-se com qualquer coisa que eu falasse e
seu elogio sempre acompanhava um “repare, uma coisa dessas!”.
admirava quem sabia ler e,
contrariando minha mãe, escondia entre os dedos de minhas mãos alguns trocados,
sabendo que eu guardaria aquele dinheiro até que precisássemos comprar qualquer
coisa faltosa de comer. o de comer era motivo de acordar cedo ou de perder o
sono, mas vó quelé me dava o dinheiro na esperança de outro alimento
comprado... um livro, quem sabe! ou mesmo uma caixa de lápis de cor aquarelável
ofertada em enganos televisivos. a riqueza do afeto superava a pobreza daqueles
tempos e parece haver alguma beleza crua na lembrança de uma criança já
crescida. existe, sim, uma singularidade no carinho que amortece o desespero da
vida e da solidão que também é crescer.
eu e minhas cinco irmãs a chamávamos
de vó de umbigo. fizera a maioria dos nossos partos, auxiliando a mãe em todos
os resguardos e em outras fatídicas experiências da vida que só elas sabiam,
mas que catei entre as linhas das conversas, das fofocas e das memórias de
ambas. ensinaram-me até em silêncio grave, até no inconfessável de uma mulher.
com elas, espantei-me pela primeira vez com o que poderia significar ser
mulher. elas construíram um outro ser mulher quando lhes foram exigidas a
obediência e a condição de fêmeas inumanas. com elas, aprendi a defender o
feminino em mim, meu mistério execrado por tanto tempo, meus dois espíritos
diria, talvez, minha tataravó se viva estivesse… pude sair dos pólos para o
entre, a interseção, sem escolher, abraçando as dissidências da alma, dos
amores e dos sexos; trindade misteriosa, intuo.
mas também a existência abraça a
morte e ambas nos assombram, lançando-nos num pavor quase pueril de quem tateia
em busca de sentidos. e nesse susto perdi vó quelé para o tempo inexorável e
foi como se deus me roubasse algo de enorme e indizível valor, e como se me
furtasse o direito de ter uma avó que, ao contrário das outras duas, me
escolheu ao cortar o cordão umbilical que me unia à minha mãe e me amou
desmedidamente. se eu desenhava, ela era sempre a primeira a elogiar admirada;
se precisava de ajuda, era a mim que, às vezes, recorria para tarefas triviais
e eu ia como aluno ou como uma filha que porta o traço de mistério
não-hereditário em busca de um saber que só ela detinha. vó quelé é uma das poucas ausências físicas
que me tomam lágrimas de saudade e de felicidade bondosas. quando penso nela,
não raro, choro… mas, quase sempre, também sorrio.
e cada lágrima questiona: como
capturar o afeto através da memória e reviver alguém que se ama? a eternidade
reside no ínfimo instante, intacta, e eu me ancoro nesta tolice imaginativa
infante para seguir à espera que um dia eu represente o que vó quelé ainda
significa em mim, porque eu sequer cresci, vó! sequer parei de temer coisas
anônimas como, por exemplo, o amor.
na palavra ou na memória, como se
fosse eu deidade maior que o deus, ouso te renascer e te tornar perene.
Anum Costa é poeta, desenhista, produtora cultural, revisora de textos e pesquisadora das literaturas contemporâneas. Publicou em antologias de poesia, contos e crônicas, além de facilitar oficinas/palestras sobre literatura, dissidências poéticas e escrita criativa. Em 2022, foi finalista do Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura com o livro Camboa: poesia e outros mistérios, publicado na Coleção Pajubá em junho de 2023 pela Hecatombe, selo político da Editora Urutau (SP).
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