A figa verde a a misteriosa mulher de branco. - Resenha por GUTEMBERG ARMANDO DINIZ GUERRA
RESENHA:
Tive o privilégio de ler o manuscrito e
poder comentar com o autor minhas primeiras impressões sobre esse livro que, meses
depois, me chega às mãos antes do lançamento, como um presente precioso, em
exemplar muito bem-acabado pela Editora Paka-Tatu. Minhas reações seriam
possivelmente previsíveis, como serão a de outros leitores que estiveram
presentes no ambiente e tempo político em que a trama se desenvolve nos revelando
um autor maduro, consciente da gravidade e ferocidade do regime político que
abatia a sociedade brasileira naquele momento.
O texto traz 72 capítulos curtos com um
alto grau de impacto psicológico por conta das diversas formas descritas de
autoritarismo e violência física e moral contra crianças e adultos, provocadas
por autoridades institucionais (soldados, madre superiora, governo militar...)
e por um clima de permanente ameaça. Algumas passagens me pareceram familiares
e fui checar nas outras publicações que eu já tinha lido de Paulo Roberto
Ferreira. Confirmei que ele já tinha dado pistas em Mosaico Amazônico (Paka-Tatu, 2021) e Roubaram meu libertango (Paka-Tatu, 2022), de algumas cenas que
foram apropriadas e situadas em estórias mais complexas e muito bem encadeadas
porque, pelo que se pode deduzir, fazem parte de um mesmo enredo.
Dei uma checada entre o texto original que
eu tinha lido há meses atrás e o que agora se apresentava com o cheiro de
edição novíssima. Notei pequenos ajustes, alguns acréscimos, algumas mudanças
de nomes e omissão de outros, certamente para dar maior calibre ficcional do
que já tinha na primeira versão. Senti o esforço enorme do autor revisando sua
lavra, a corrigir emocionado cada passagem, trazendo seus leitores para perto
em cada gesto de dizer o que fora aqueles duros e dolorosos períodos ali
presentes como ficção, mas com toques de proximidade muito provável com a
realidade.
O tempo do romance é o da ditadura militar
que se estabeleceu no Brasil de 1964 a 1985 e o rescaldo da Guerrilha do
Araguaia acontecida na primeira década dos anos 1970, que regem praticamente
toda a vida do principal personagem, Djanilo. Um elemento forte e permanente de
tensão que acompanha este personagem muito bem elaborado desde o início até o
fim da trama é que ele é odiado pelos militares desde a infância. Ele entra na
guerrilha do Araguaia e passa toda a sua vida sem poder revelar sua verdadeira
identidade por efetivas questões de segurança. Em seguida ele vaga
deslocando-se na América Latina para sobreviver, distante do pai que lhe
protegera em um primeiro momento e se perdera de vista durante longo tempo. É
identificado pelo pai no final do livro por um sinal que lhe fora dado quando
se separaram e entraram na clandestinidade, distanciando-se fisicamente e
perdendo-se um do outro.
Em períodos curtos e objetivos, narrado em
terceira pessoa, o texto hipnotiza o leitor pela empatia provocada pela
intimidade que revela em cada estória, sempre no plano da emoção e de uma
tensão provocada pelo clima de repressão e suspense que atravessa cada trecho. O
fio principal é o de uma personagem masculina, Djanilo, e sua trajetória de
criança que sofre violência por ter brincado inocente e irreverentemente com as
representações militares em um desfile escolar. Essa pieguice vai lhe custar,
tanto a ele quanto a seu pai, uma perseguição implacável por todas as suas vidas.
Uma freira rebelde é enviada para a
Amazônia por castigo ao seu recalcitrante comportamento no convento em Minas
Gerais. Ela também atravessa todo o enredo em aparições efetivas ou
subliminares, como um fantasma ou inspiração de momentos intuitivos na
narrativa. Ela e o menino irreverente se cruzam, misteriosamente, em
determinados momentos, mas cada um segue seu caminho de resistente.
Uma terceira personagem, homem de origem
humilde, inicia sua profissão como cobrador de ônibus coletivos entre Belém e
Ananindeua e se torna operador de máquinas pesadas em regiões de desmatamento e
abertura de estradas. È mobilizado nos relatos de forma muito humana e
compreensiva, como alienado, mas sensível ao que testemunha de crueldade,
afastando-se discretamente das maldades que não quer compartilhar. Passa por
diversos empregos e vê sua vida se esgotar trabalhando em lugares distantes e
arriscados tanto pelo ambiente físico quanto pelo ambiente social conflitado e
com ameaças a índios e camponeses.
Todas as personagens apresentam situações
existenciais e propõem reflexões sobre suas trajetórias pessoais e
relacionamentos familiares e sociais prejudicados por conta da repressão feroz.
O romance vai ter um desfecho com esse tom amargo de tentativas frustradas de
ser feliz.
Além dos figurantes listados acima, vamos
encontrar um médico militante, um funcionário do Serviço de Proteção ao Índio,
guerrilheiros forçados ao combate pelas ações de inteligência e intervenção na
área em que preparavam um foco de ação política. São outros tipos que aparecem
na narrativa e dão corpo e ambiência ao instigante texto. As notícias sobre os
confrontos chegam a Belém e mobilizam outros tipos que também compõem cenários
da tensão que fazem parte da intrincada trama.
Senti-me preso e incomodado durante toda a
leitura por associar imediatamente essa ficção ao que vivemos nos anos 60 a 80
do século passado, como estudantes e profissionais, no tempo em que vigia a
ditadura militar instalada em 1964 e durando duas décadas no Brasil com
rebatimentos na América do Sul.
Embora boa parte do romance se encontre
situado espacialmente no campo paraense, a cidade de Belém também serve de
cenário quando, praticamente na metade da narrativa, começam a entrar
personagens e tipos urbanos, estudantes universitários, profissionais do
jornalismo e de outras profissões, boêmios, religiosos e militantes que se
engajam no combate à ditadura arriscando suas vidas e de suas famílias.
A evolução das personagens no tempo vai
dando conta das contradições entre o discurso oficial grandiloquente e o nível
de pobreza se que acumulam, em biografias ricas de detalhes, mas retratando o
grau de exploração humana a que estão submetidos em regimes de trabalho
esgotantes, insalubres e desumanos os camponeses e operários. Eles formam
famílias ou tem filhos que se dispersam em diásporas existenciais comuns aos
pobres e oprimidos.
O tempo da narrativa evolui com as
personagens, atualizando e utilizando fatos históricos que imergem o leitor nas
tramas, acionando uma memória recente do país. A verossimilhança com
personagens e momentos históricos dá muita densidade ao texto e situa o leitor
em um clima que esclarece e emociona.
A cada obra que Paulo Roberto Ferreira
publica vai se apresentando como um escritor com uma capacidade de análise
enorme para nos esclarecer sobre aqueles tempos de chumbo. O material que ele
acumulou como registro durante sua vida profissional, junto com as vivências
que teve de perseguição em seu cotidiano pessoal e dos que com ele partilharam
as angústias dos resistentes lhe dão uma têmpera diferenciada que, associada à
competência de narrador, revela um dos grandes de nossa literatura.
Considero um romance fundamental para
situar as gerações mais recentes e as que virão no que foram os anos vividos
por pessoas naquela época.
Professor,
ResponderExcluirObrigado por sempre presentear com textos maravilhosos!