A figa verde a a misteriosa mulher de branco. - Resenha por GUTEMBERG ARMANDO DINIZ GUERRA

 



RESENHA: A figa verde a a misteriosa mulher de branco de Paulo Roberto Ferreira 


GUTEMBERG ARMANDO DINIZ GUERRA


FERREIRA, Paulo Roberto. A figa verde a a misteriosa mulher de branco. Belém: Editora Paka-Tatu, 2024.

Tive o privilégio de ler o manuscrito e poder comentar com o autor minhas primeiras impressões sobre esse livro que, meses depois, me chega às mãos antes do lançamento, como um presente precioso, em exemplar muito bem-acabado pela Editora Paka-Tatu. Minhas reações seriam possivelmente previsíveis, como serão a de outros leitores que estiveram presentes no ambiente e tempo político em que a trama se desenvolve nos revelando um autor maduro, consciente da gravidade e ferocidade do regime político que abatia a sociedade brasileira naquele momento.

O texto traz 72 capítulos curtos com um alto grau de impacto psicológico por conta das diversas formas descritas de autoritarismo e violência física e moral contra crianças e adultos, provocadas por autoridades institucionais (soldados, madre superiora, governo militar...) e por um clima de permanente ameaça. Algumas passagens me pareceram familiares e fui checar nas outras publicações que eu já tinha lido de Paulo Roberto Ferreira. Confirmei que ele já tinha dado pistas em Mosaico Amazônico (Paka-Tatu, 2021) e Roubaram meu libertango (Paka-Tatu, 2022), de algumas cenas que foram apropriadas e situadas em estórias mais complexas e muito bem encadeadas porque, pelo que se pode deduzir, fazem parte de um mesmo enredo.

Dei uma checada entre o texto original que eu tinha lido há meses atrás e o que agora se apresentava com o cheiro de edição novíssima. Notei pequenos ajustes, alguns acréscimos, algumas mudanças de nomes e omissão de outros, certamente para dar maior calibre ficcional do que já tinha na primeira versão. Senti o esforço enorme do autor revisando sua lavra, a corrigir emocionado cada passagem, trazendo seus leitores para perto em cada gesto de dizer o que fora aqueles duros e dolorosos períodos ali presentes como ficção, mas com toques de proximidade muito provável com a realidade.

O tempo do romance é o da ditadura militar que se estabeleceu no Brasil de 1964 a 1985 e o rescaldo da Guerrilha do Araguaia acontecida na primeira década dos anos 1970, que regem praticamente toda a vida do principal personagem, Djanilo. Um elemento forte e permanente de tensão que acompanha este personagem muito bem elaborado desde o início até o fim da trama é que ele é odiado pelos militares desde a infância. Ele entra na guerrilha do Araguaia e passa toda a sua vida sem poder revelar sua verdadeira identidade por efetivas questões de segurança. Em seguida ele vaga deslocando-se na América Latina para sobreviver, distante do pai que lhe protegera em um primeiro momento e se perdera de vista durante longo tempo. É identificado pelo pai no final do livro por um sinal que lhe fora dado quando se separaram e entraram na clandestinidade, distanciando-se fisicamente e perdendo-se um do outro.

Em períodos curtos e objetivos, narrado em terceira pessoa, o texto hipnotiza o leitor pela empatia provocada pela intimidade que revela em cada estória, sempre no plano da emoção e de uma tensão provocada pelo clima de repressão e suspense que atravessa cada trecho. O fio principal é o de uma personagem masculina, Djanilo, e sua trajetória de criança que sofre violência por ter brincado inocente e irreverentemente com as representações militares em um desfile escolar. Essa pieguice vai lhe custar, tanto a ele quanto a seu pai, uma perseguição implacável por todas as suas vidas.

Uma freira rebelde é enviada para a Amazônia por castigo ao seu recalcitrante comportamento no convento em Minas Gerais. Ela também atravessa todo o enredo em aparições efetivas ou subliminares, como um fantasma ou inspiração de momentos intuitivos na narrativa. Ela e o menino irreverente se cruzam, misteriosamente, em determinados momentos, mas cada um segue seu caminho de resistente.

Uma terceira personagem, homem de origem humilde, inicia sua profissão como cobrador de ônibus coletivos entre Belém e Ananindeua e se torna operador de máquinas pesadas em regiões de desmatamento e abertura de estradas. È mobilizado nos relatos de forma muito humana e compreensiva, como alienado, mas sensível ao que testemunha de crueldade, afastando-se discretamente das maldades que não quer compartilhar. Passa por diversos empregos e vê sua vida se esgotar trabalhando em lugares distantes e arriscados tanto pelo ambiente físico quanto pelo ambiente social conflitado e com ameaças a índios e camponeses.

Todas as personagens apresentam situações existenciais e propõem reflexões sobre suas trajetórias pessoais e relacionamentos familiares e sociais prejudicados por conta da repressão feroz. O romance vai ter um desfecho com esse tom amargo de tentativas frustradas de ser feliz.

Além dos figurantes listados acima, vamos encontrar um médico militante, um funcionário do Serviço de Proteção ao Índio, guerrilheiros forçados ao combate pelas ações de inteligência e intervenção na área em que preparavam um foco de ação política. São outros tipos que aparecem na narrativa e dão corpo e ambiência ao instigante texto. As notícias sobre os confrontos chegam a Belém e mobilizam outros tipos que também compõem cenários da tensão que fazem parte da intrincada trama.

Senti-me preso e incomodado durante toda a leitura por associar imediatamente essa ficção ao que vivemos nos anos 60 a 80 do século passado, como estudantes e profissionais, no tempo em que vigia a ditadura militar instalada em 1964 e durando duas décadas no Brasil com rebatimentos na América do Sul.

Embora boa parte do romance se encontre situado espacialmente no campo paraense, a cidade de Belém também serve de cenário quando, praticamente na metade da narrativa, começam a entrar personagens e tipos urbanos, estudantes universitários, profissionais do jornalismo e de outras profissões, boêmios, religiosos e militantes que se engajam no combate à ditadura arriscando suas vidas e de suas famílias.

A evolução das personagens no tempo vai dando conta das contradições entre o discurso oficial grandiloquente e o nível de pobreza se que acumulam, em biografias ricas de detalhes, mas retratando o grau de exploração humana a que estão submetidos em regimes de trabalho esgotantes, insalubres e desumanos os camponeses e operários. Eles formam famílias ou tem filhos que se dispersam em diásporas existenciais comuns aos pobres e oprimidos.

O tempo da narrativa evolui com as personagens, atualizando e utilizando fatos históricos que imergem o leitor nas tramas, acionando uma memória recente do país. A verossimilhança com personagens e momentos históricos dá muita densidade ao texto e situa o leitor em um clima que esclarece e emociona.

A cada obra que Paulo Roberto Ferreira publica vai se apresentando como um escritor com uma capacidade de análise enorme para nos esclarecer sobre aqueles tempos de chumbo. O material que ele acumulou como registro durante sua vida profissional, junto com as vivências que teve de perseguição em seu cotidiano pessoal e dos que com ele partilharam as angústias dos resistentes lhe dão uma têmpera diferenciada que, associada à competência de narrador, revela um dos grandes de nossa literatura.

Considero um romance fundamental para situar as gerações mais recentes e as que virão no que foram os anos vividos por pessoas naquela época.


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