A modernização do sagrado - Gutemberg Armando Diniz Guerra
A modernização do sagrado
Gutemberg Armando Diniz Guerra
As tecnologias eletrônicas invadiram o
mundo como uma grande onda avassaladora, inundando irreverentemente os espaços
mais conservadores e herméticos da sociedade. Primeiro incompreensivelmente
para todos mas a todos regendo pelos encantos das imagens traduzidas na telinha
e mais recentemente com nomes técnicos como algorítimos e inteligência
artificial, algo fora de nós mas sob o nosso ilusório domínio.
Era uma quarta feira à noite e a missa
tinha incluída a intenção de celebração da vida de parentes que se
desencarnaram exatamente havia um ano. O templo dedicado a São José estava
cheio e a movimentação era intensa, desde a rua, entrada, estacionamento,
varanda e a capela. No térreo, antes da subida para o templo, iguarias eram
vendidas em pratos descartáveis, voluntários se repartiam nos serviços e fiéis
se alimentavam de mingaus, bolos e comidas típicas em uma espécie de quermesse
urbana muito animada.
A entrada para a missa teve lugar na
grande capela do andar superior, acompanhada de música executada por violão,
bateria e vozes amplificadas por microfones e mesas de controle. Uma imagem de
Santa Rita foi exibida por um padre que a portava solenemente à frente do
cortejo composto por um jovem sacerdote, dois auxiliares concelebrantes e
jovens vestidos com o rigor ritual de coroinhas em cores vermelha e branca.
Terminada a procissão inicial da
cerimônia, o padre informou que a imagem que portara continha uma relíquia de
Santa Rita de Cássia que ele trouxera da Itália. Era troféu de uma de suas
peregrinações à cidade onde o corpo da santa se mantinha incorruptível desde
1457 quando de sua morte como freira agostiniana em convento na localidade que
lhe ficou agregada ao nome de canonização.
Após o Introito, prosseguiram-se as
leituras e um longo sermão sobre Rita de Cássia com detalhes biográficos sobre sua
vida doméstica, os milagres que realizou ainda em vida e os que a levaram a ser
beatificada e canonizada como intercessora das causas impossíveis. Rosas
vermelhas, símbolo de um de seus mais famosos milagres, foram levadas por
muitos fiéis e aguardavam a benção que o celebrante prometera fazer ao final da
missa que duraria uma hora e meia, incluindo a exposição do Santíssimo
Sacramento em um ostensório dourado que deveria permanecer em oração até o dia
seguinte.
Embora tivesse assistido outras
celebrações em anos anteriores, começou a me chamar a atenção o uso ostensivo
de aparelhos celulares por pessoas em todo o templo. Durante o momento em que
um dos celebrantes colocava a hóstia no expositor, o sacerdote principal munido
de um microfone e uma telinha manual dava comandos para as pessoas fazerem seus
pedidos ao Deus materializado na hóstia consagrada dentro do mostruário em
formato de sol. O sacerdote auxiliar percorreu toda a extensão do templo,
primeiro pela ala esquerda, depois pela direita, finalizando pela nave central
e, pacientemente, esperando as pessoas com as mãos abertas, olhos fixos abertos
ou fechados, lábios cerrados ou em preces murmuradas, fazerem menção de
veneração e respeito ao pão consagrado, exibindo fotografias de suas famílias,
documentos de identidade e celulares muitos com imagens daqueles a quem se
destinavam as preces. Havia, ao que me parecia, que pessoas pediam para
abençoar os aparelhos eletrônicos, eles mesmos, tanto quanto outras intenções
que ele trazia!
Fiquei impressionado com a quantidade desses
aparelhos eletrônicos portados por pessoas de todas as idades e condições
sociais. Antes da celebração eu tinha silenciado e colocado o meu indiscreto aparelho
no bolso, mantendo a firme disposição de não tocá-lo enquanto não terminasse a
missa, uma vez que para mim, fazer qualquer conexão a partir desse equipamento
seria quebrar a sacralidade do momento. Creio ainda em um tipo de comunicação
com o divino que prescinde dos softwares e hardwares das grandes empresas e
empresários multinacionais.
Dei-me conta de que boa parte do discurso
de animação que o celebrante fazia era com o uso do microfone seguro na mão
esquerda e ao fazer orações específicas destinadas à santa italiana, o
sacerdote se serviu da telinha sustentada na sua mão direita.
Em ocasiões anteriores eu tinha estranhado
a lamparina eletrônica de cor vermelha que indica em praticamente a maioria dos
templos, a presença da hóstia consagrada nos sacrários. Lembrei que em nossa
casa, na Ribeira, em Salvador, meus pais mantinham uma chama acesa no santuário
particular em cima de um móvel no quarto do casal, mas essa era alimentada por
óleo de mamona e um pavio sustentado por uma rolha de cortiça. Participei de
muitas procissões, fossem elas dentro de templos ou nas ruas, no Brasil e no
exterior, em que as luminárias eram velas protegidas por improvisados formatos
cônicos de papel de seda ou outro quebra vento transparente, depois evoluídos
para garrafas pet, exigindo sempre habilidade dos fiéis ou dos tocheiros para
manter a chama acesa durante o percurso desafiador do ar em movimento. Nesta
celebração que descrevo as tochas eram bastões sustentando lâmpadas potentes
portadas pelos impecáveis rapazes e moças que serviam de jovens acólitos.
Senti que minha religiosidade ainda estava
ancorada em padrões antiquados, questionando detalhes da modernidade que se
expressam por energia elétrica captada e convertida em diversas formas de
luminosidade, sonoridade, imagens nos aparelhos de comunicação e outros que não
são mais os elementos fundamentais que estruturou durante séculos a percepção
dos seres humanos.
A relíquia de Santa Rita levada pelo padre
católico para veneração e materialização da intercessão da santa dos pedidos
impossíveis era um dos sinais da tradição que se mantinha, tanto quanto as rosas
vermelhas, terços e escapulários usados por alguns fiéis e as impecáveis alfaias
que vestiam os participantes da celebração e cobriam o altar. Concomitante a
tudo isso indumentárias, missais, catecismos foram substituídos por celulares,
ainda que se vissem como vestígios dessas tecnologias arcaicas álbuns de fotografias,
porta-retratos, carteiras de identidade e objetos pessoais como representações
de pessoas ou milagres solicitados ao divino por intercessão da santa viúva
italiana pacificadora das famílias rivais do patriarcado de seu torrão.
Tempo e espaço se converteram em algo
muito mais concreto do que o relógio digital que percebi na lateral do templo,
indicando que não há mais necessidade de torres nem sinos para indicar as
horas. As pessoas carregam o mundo literalmente na palma das mãos em forma de
pequenos objetos retangulares, luminescentes, com mecanismos de comunicação
escrita, falada ou televisada, dando-lhes a sensação de serem espécies de
divindades. Do outro lado da linha, pensei, se não haveria os mesmos hábitos...
Ainda bem que a oração é algo que parte do
interior de cada um e que o divino é poliglota e dispensa plataformas digitais
sob suas variadas denominações, senão muitos, como eu, estaríamos excluídos, ou
teríamos muita dificuldade nesse diálogo com o sagrado!
Comentários
Postar um comentário