Caixas d’água - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 



Caixas d’água¹

 

Gutemberg Armando Diniz Guerra

 

Caixas d’água dos tempos que antecedem ou sucedem os da economia da borracha ainda podem ser vistas no perfil da cidade de Belém. Com os arranha céus que se projetam nesse mesmo perfil, é inevitável que Nova York surja como uma espécie de espelho, ainda que com muitas diferenças, principalmente de escala, dessa nossa cidade amazônica. Mais instigante ainda é que as tecnologias mudaram todas, em muitas dimensões, mas há muitas permanências que nos interrogam sobre até quando perdurarão. Uma delas ainda é sobre essa relação da urbanidade com a água. Sabemos que há muitos poços sendo perfurados para se buscar aquíferos e romper-se com a dependência das companhias de saneamento básico que se privatizaram e cobram preços exorbitantes pelo fornecimento do precioso líquido sem que tenha havido uma melhoria na qualidade do serviço.

No Bairro de São Braz, próximo de onde ficava a estação de trem e onde hoje funciona um belo mercado municipal, na mesma emblemática Belém, uma caixa dágua em formato de disco voador domina a paisagem, chamando a atenção de quem por ali passar.

Em Marituba, no Pará, ao lado da antiga estação de trem, uma caixa d’água de arquitetura neoclássica chama a atenção pelo estado de conservação em que está. Ela servia para resfriar a caldeira dos trens que faziam a histórica linha entre a capital do estado e o Município de Bragança até os anos 1960, quando foi desativada a ferrovia.

Os telhados são cobertos de placas de captação de energia solar, mas praticamente toda a água dessa irrigada Amazônia escoa livre para o solo impermeabilizado de cimento e asfalto.

Em Salvador, na Bahia, tem um bairro que se chama Caixa D´água, por conta da existência de dois reservatórios elevados que servem para abastecer o Bairro da Liberdade, seu vizinho.

Na antiga abadia do Monte Saint Michel na França, fiquei muito impressionado com a forma de captação da água de chuva feita pelos monges moradores daquela construção. Pranchas enormes de tábuas se projetavam para fora do mosteiro, inclinadas com a parte baixa para aberturas na parede, despejando a água coletada em um enorme reservatório com capacidade para abastecer toda a pequena cidade durante praticamente todo o ano.

O convento agostiniano de São Vicente de Fora tem um telhado todo forrado de pedra que desvia toda a chuva que lhe tomba e a leva para canaletas que vão abastecer um enorme reservatório que nos induz a pensar que a ligação do divino com os monges se dava por esse elemento linfático e simbólico. Mas outros equipamentos coletivos dos detentores do saber também acumulavam o líquido aquoso em cisternas profundas encravadas em seus intramuros. Assim também é o Castelo de São Jorge na capital portuguesa, fortificação que resistiu a muitos ataques durante séculos justamente por dispor desse dispositivo.

O curioso é que em lugares onde a abundância de água é maior, os sistemas de captação ou de utilização da energia que passa por ela são escassos, quando não inexistentes. Pior do que isso são as alterações climáticas que ocorrem justamente pelas intervenções que desviam o curso natural das águas para a atmosfera, formando ciclos tempestuosos e sem nenhum controle.

Muito questionável é a engenharia que desdenha de tecnologias milenares, intensivas no uso de material local e em mecanismos inteligentes que faziam a circulação da água ocorrer em circuitos virtuosos e harmônicos com sua própria natureza e em benefício das populações urbanas e domesticadas.

Gosto das caixas d´água como espécies de camelos mágicos a serviço da humanidade, em que pese todos os cuidados que elas exijam para se encherem, se manterem limpas e distribuírem o líquido que acumulam. Os tempos mudaram, mas esses equipamentos permanecem como uma espécie de memória de que há como se aproveitar da inteligência humana construindo benefícios coletivos.





[1] Enviada para publicação na Revista Variações em 23/06/2024 às 5:57 horas.

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