Histórias miúdas do cotidiano amazônico por Gutemberg Armando Diniz Guerra
Resenha: Histórias miúdas do cotidiano amazônico
PESSOA, Octavio. Causos amazônicos. Belém: Editora
Paka-Tatu, 2012. 112p.
A leitura de uma
determinada obra pode nos dar muitas impressões. A que tive lendo Causos amazônicos de Octávio Pessoa foi
a de que estava ouvindo uma conversa atrás da outra em alguma esquina, ou na
varanda da casa de um amigo, ou em alguma mesa de família, ou de bar entre
conhecidos. Enfim, narrativas que se ouvem em lugares comuns, entre amigos
próximos, como explicita o próprio autor na breve apresentação que faz do livro.
Ora ria, ora ficava refletindo sobre os cenários e detalhes de cada situação
que o autor nos trazia. Nesse ler despretensioso fui percorrendo causo a causo,
todos eles que poderiam ter ocorrido na vida de qualquer um originário ou
morador de cidades e vilarejos como os de nossos municípios interioranos e
mesmo em alguns bairros de periferia das metrópoles. São 27 narrativas
descontraídas que retratam o mundo amazônico revelado em paisagens e
personagens. Inicia por uma crônica ancorada em personagens do Bairro do Marco,
em Belém do Pará e vai fazê-los se conectar com outros de sua cidade natal,
Parintins, no Amazonas.
O último relato é,
a meu ver, o mais comovente de todos pela intensidade de sentimento que ali vai
expresso em homenagem a um morador de rua da pequena comunidade de Parintins,
cidade do Estado do Amazonas, tornada célebre por conta da disputa entre os bois
Garantido e Caprichoso. Eles parecem fechar um círculo pois que tratam de
eventos tristes, o falecimento de figuras marcantes, em situações de pobreza
material mas de riqueza antropológica incontestável. A ideia de ciclo e círculo
me vem e se consolida por conta de que um desses personagens, o Murico, aparece
na primeira narrativa e na última, quando o autor lhe presta homenagem por ter
notícia de seu falecimento antes que se finalizasse a edição desse livro. Na
primeira crônica, também a morte é protagonista no causo em que um personagem
de Parintins, o Quica, adulto que tem comportamentos infantis e se mistura com
os jovens do lugar, se torna o primeiro cadáver que Octavio Pessoa teria
avistado em sua existência.
O envolvimento
do autor com o ambiente de sua cidade natal, da qual se afasta fisicamente aos
16 anos, lhe fica grudado na memória e lhe possibilita dar como produto essa
edição de histórias vividas ou amealhadas por ouvir dizer. Quem tiver vivido em
comunidades pequenas, terá certamente uma afetividade aguçada por essas linhas
do desterrado parintiense Octávio José Pessoa Ferreira. Esse envolvimento vai
se revelar desde a capa do livro, com um desenho representando uma cena do cotidiano camponês,
com um casal em um jirau na beira de um igarapé, em uma atividade de lavagem de
roupa suja. O homem magro, negro, de calção e camiseta assiste e sorri da ou
para a mulher barroca, rechonchuda, com torso na cabeça, de joelhos, que
esfrega um sabão em uma peça de tecido apoiada em uma espécie de ripado. Roupas
no varal e vegetação baixa compoem a gravura assinada por João Bento.
Tomo
conhecimento da imagem do autor pela 4ª capa, em que ele aparece a postos,
frente a um computador portatil que se encontra sobre uma escrivaninha, tendo
ainda porta retratos e, em segundo plano, um barco de miriti típico da região, colocado
em uma estante a compor a cena. A imagem representa bem a profissão de
jornalista e escritor em pleno exercício, embora o texto informe que além da
graduação em Jornalismo ele agrega a de Direito. A publicação de seu livro
coincide com o ano de sua aposentadoria, em 2012, como auditor federal de controle
externo do Tribunal de Contas da União, tendo galgado esse cargo após ter sido
locutor de rádio, sócio de produtora de vídeo, agente administrativo do
Instituto Nacional de Previdência Social, procurador autárquico do Instituto de
Administração Finaceira da Previdência Social. Esses elementos visuais e
descritivos presentes no texto permitem uma compreensão do ecletismo do
escritor que se comunica muito bem através desse apanhado de crônicas
memorialistas de sua vida.
Pode-se apreender desse conjunto o quanto é
sofrida a existencia de categorias sociais oprimidas pelo sistema de exclusão ou
baixa assisência à população humilde no que concerne à educação, saúde, moradia
e alimentação, tanto quanto a um mínimo de atenção ao serviço social de que são
necessitadas as pessoas mais humildes. Alcoolismo, violência, constrangimentos
(bulling), prostituição, ignorância,
analfabetismo, segregação e discriminação são ingredientes que se expõem nos
escritos, embora esteja explicitado todo um cuidado do autor em não reforçar
esses aspectos. Ao contrário, ele parece ter sido bem atento a termos que
pudessem lhe vir a imputar a pecha de preconceituoso ou politicamente
incorreto, o que ressalta em alguns relatos fazendo a devida atenção e
atualização da linguagem.
O material apresentado por Octavio Pessoa,
ainda que assumidamente de carater diletante, possibilita uma análise
antropológica de comunidades rurais principalmente pelos aspectos pitorescos da
vida interiorana que apresenta, permanecendo em relevo o linguajar regional em
termos que exigiram a elaboração de um glossário que vem anexado ao final da
obra. Mais do que o linguajar, a prática de dar apelidos às pessoas, seja pelo
uso do diminutivo, aumentativo, seja por aspectos físicos ou detalhes biográficos
dos representados, seja ainda pelas atividades profissionais ou papeis
exercidos pelos protagonistas de cada história, as comunidades rurais ou
periféricas da grande cidade estão ali a clamar por reconhecimento.
Imagino o quão
virtuoso deve ser Otávio Pessoa em sua oratória e prática de contador de
causos, materializada nesses escritos, segundo ele estimulado para publicação
por personalidades da vida belemense, como a Professora Amarilis Tupiaçu e o
advogado Paraguaçu Eleres.
Nesse momento de
esforço por um protagonismo amazônico nas rodadas de negociações nacionais e
internacionais, faz-se necessário conhecer seus tipos e personagens, o
cotidiano e as estruturas de pensamento e práticas dos atores presentes nessa
região sempre muito mal tratada pelos que a veem sempre como problema, ou como
celeiro de recursos materiais e riquezas imateriais. Ler, ouvir e refletir
sobre o que sai daqui pode ser um excelente caminho de compreensão do multifacetado
mundo amazônico.
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Olá Gutemberg. Tudo bem? Parceiro, eu já recebi muitos feedbacks em função desse meu livro mas nunca um tão preciso, objetivo e humano como esse seu. Quero tomar uma geladauma gelada jogando conversa fora com você, o Paulo Ferreira e outros amigos. O convite está feito.
ResponderExcluirO seu livro é uma preciosidade como memória a ser guardada! Terei imenso prazer em conhecê-lo e sob a mediação de nosso caríssimo Paulo Ferreira terá uma grande festa!
ExcluirCaríssimo Professor Doutor Gutemberg, gostei muito da sua resenha de “Causos amazônicos”, de Octávio Pessoa. Como sempre, impecável, meu nobre amigo. Parabéns! Amo ler suas resenhas! Deu-me, é claro, vontade de ler o livro. Impossível não sentir vontade de ler a obra respectiva ao ler qualquer de suas belíssimas e apronfudadas resenhas. Sugiro, a propósito, meu caro Prof. Dr. Gutemberg, um livro de suas resenhas literárias. Ficará excelente, meu amigo. Sua produção de resenhas merece ser publicada como livro. Pense nisso.
ResponderExcluirForte abraço
Obrigado, amigo, pelos comentários e sugestão!
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