Entrevista com Gabriel Alvarenga
01 - Gabriel, nos fale um pouco do teu processo de escrita. E além disso, nos fale também de ti, quando está escrita começou e por que ela começou?
Sempre li muito, mas escrever não foi algo natural, gostava mesmo era de
imaginar as histórias, aquele estado de envolvimento alucinado que a gente tem
ao ler um livro bom ou ouvir um relato das pessoas, acho que foi isso o que me
puxou pra escrever e imaginar histórias minhas. Eu comecei a escrever no fim da
adolescência, com pequenas ideias, explorando narrar alguma coisa. Mas o
processo de escrever tomou força pra mim a partir do momento que comecei a
criar esse espaço intermediário de vivência que escrever proporciona, esse
lugar que falta propósito e sobra sensação. Dou muita liberdade para as ideias,
vou escrevendo com quem vai lendo, sem tanto planejamento de início, mas sim
descobrindo um novo fio de vivência. Este romance, em especial, surge dum sonho
onde encarnei o personagem e o desafio (colocado por uma amiga) de escrever essa
história. Comecei a escrever em 2013, o livro veio em retalhos, ideias súbitas,
cenas que vivi e que pediam documentação, estados emocionais firmes dos
personagens – um Frankenstein que nem eu sabia onde ia ser costurado, se ia
mesmo ter vida! E houve uma cena central que me decifrou todo o correr da
história quando consegui escrever, mas, como procedimento, todo texto correu
bem livre. Daí habitei todos esses anos com esses personagens. Claro que há um
enxugar, um espalhar do texto bruto que sai dessa liberdade, muito trabalho de
burilar o texto até que ele vibre incandescente, todo escrever é um arroubo e
um cultivo né? Mas escrever sempre é uma experiência, meio alucinada, meio
possuída, de invasão e contágio em mim.
02 - Como
se manifesta a tua escrita, quais caminhos, quais tempos de escrita e pausa,
quem é o escritor Gabriel Alvarenga?
Atualmente digo que escrevo com mais densidade, antes era uma maratona
constante e desesperada, hoje talvez mais habituado com o escrever e mais
aprofundado de caminho percorrido. Digo isso porque não tenho tanto método
quanto ritual para começar a escrever. Escrevo sempre que posso, muitas vezes a
noite, aos pedaços, pelo celular ou notas de papel e a maioria do tempo direto
no computador. Levanto da cadeira todo o tempo quando escrevo, escuto música, por
vezes saem duas páginas corridas em 5 minutos, as vezes é uma noite inteira
zanzando pela casa e escrevendo uma sílaba por vez pra fechar uma frase. Deixo
a escrita ser esse local que entro e saio o tempo todo, porque transformar em
texto é mais um exercício de tradução e psicografia de sensações-cena que são muito
maiores que as palavras. Escrever pensando em texto final, formato ou método,
para mim, bloqueia tudo. A escrita se impõe, a gente negocia como vai ser o
telégrafo hoje e fica um tempo morando com cada texto – uns são beijo roubado,
outros meses inteiros na praia deserta, e pra eu conseguir entender o que está
se fazendo na escrita, eu preciso ficar um tempo aí com essa atmosfera. Eu começo
a escrever muitas vezes sem pensar se vou fechar ou concluir, tento entender o
ritmo e a respiração de cada volta literária, tem texto feito em uma noite, tem
livro que se gesta em 10 anos. Mas pra mim é ficar encantado, encucado,
encarnada e esfarelado.
03 - Nos
fale do seu novo livro, dos quais percursos te levaram até ele ou como ele
chegou até a ti?
Esse livro salvou minha vida de uma certa forma. Me fez companhia em um período
de minha vida muito escuro, muito solitário, e Pirata, o personagem do romance,
surgiu como um espelho kamikaze do que se passava em minha vida naquele
momento. Mas, como todo espelho de vidro, se espatifou e ampliou os reflexos
aos milhares, e foi numa jornada a essa noite humana e carnal que ele me levou.
Foi concluído em dois anos, escrito em estados intensos afetivos e aos pedaços
como disse, mas me chegou mesmo como uma forma de olhar a vida humana de modo
tragicamente radical, afetivamente apaixonado e com bastante fome. Esse romance
também emperrou muitos anos, quase foi deletado visto a quantidade de “nãos”
que recebeu. Muitos dos concursos, editais e propostas para editais foram
negados, e eu, autor humano que tem que dar conta do cotidiano, pensei em
maldição, em história indigesta, em escrita de má qualidade... O romance toca
temas talvez ousados para algumas pessoas como sexo, vivência LGBT, violência
urbana, solidão e uso de drogas, mas o percurso de um texto independente muitas
vezes é mais dúvida e fúria que resposta mesmo. Ainda não sei o que se passa,
mas Pirata girou anos talvez pra maturar, ou pra conseguir chegar a um prêmio
LGBTQIAN+, talvez pra chegar nas parcerias felizes que tenho tido – aqui
celebro a imensa oportunidade da revista Variações e da editora Folheando –,
talvez pra ganhar prumo, não sei, mas só sei que ele publicado é um descarrego
e uma festa. Me chegou como um abraço, fomos aos trancos e barrancos correndo
mundo, mas permanece esse firme e amoroso abraço.
04 - Buscas
uma escrita que se aproxime do que ou que se afaste do que?
A escrita me aproxima da vida, dos acontecimentos nesse vislumbre apoteótico
que está na pele, nas sensações e nos encontros, acho que quero sempre me
aproximar da intimidade das coisas. E me afasto, ou tento ativamente desfazer
esse formato da escrita, de análises pretenciosas e “corretas” sobre alguma
situação ou das ditas belezas perfeitas do mundo literário. A injustiça, a
marginalização e a violência não me espantam, me assombram, mas não me
espantam. Todo artista que topa ver a vida de frente vai se dar com toda forma
de tragédia, e a mim escrever e fazer passar sim essas vozes esgoeladas, esses
mini assassinatos cotidianos e todo sorte de injustiça e vileza que a
experiência humana compõe. O mundo artístico é composto muitas vezes de machos
inteligentes e privilegiados que ficam a se paparicar uns aos outros, num
fingimento de ousadia que, pra mim, parece clube de babacas – dos temas que
abordam aos modelos de avaliação que corroboram. Eu escrevo buscando a feira
livre, a mulher, toda a comunidade, a sujeira da rua, o riso da criança, o soco
no beco noturno, a bebedeira e o amor barato, não como curiosidade exótica, mas
como sumo da vida real. A pompa da literatura, para mim, é tediosa e cruel, o
mundo é caoticamente deslumbrante, e a gente tá aqui para fugir não da dor, mas
da crueldade. Eu escrevo para poder tocar realmente em tudo.
05 - Quais
tuas principais referências no processo de escrita desse novo livro?
Esse livro foi muito interferido por música, eu escrevo ouvindo música a maior
parte do tempo, então penso que a cadência da carne desse livro é musical, do
acid-rock de Janis Joplin aos versos de Cartola. Mas pensando em literatura,
Clarice Lispector que me dá a mão o tempo todo para entrar nesse ambiente da
escrita, Machado e sua ironia rebuscada acho que me olha o tempo todo, Cortázar
me dá um fôlego para correr longe e Ana Paula Maia me lambuza a pele o tempo
todo pra eu lembrar que sou chão. E muito cinema; muito do escrevo eu visualizo
em fotografia, ângulo de câmera, composição e trilha sonora como a experiência
do cinema de Luis Fernando Carvalho e Won KarWai – para citar alguns – me
proporcionam.
06 -
Indicarias uma playlist para esse novo trabalho?
Com essa do romance ter músicas tocando e interferindo o tempo todo, resolvi
criar uma playlist onde coloco todas as músicas citadas no romance na ordem em
que elas são citadas ou comparecem. De Cazuza a Ravel, de Led Zeppellin a
Sergio Sampaio, passando por Fiona Apple e Secos e Molhados, quis criar essa
possibilidade de que lê possa conhecer as músicas, ambientar a leitura com o
som que Pirata escuta e abrir esse rombo de possibilidades sinestésicas que a
música possui.
07 - Onde
comprar teu livro novo?
Meu romance Obscuro fulgor está a venda no site da Editora Folheando e na
Amazon. Também sempre há a possibilidade de comprar comigo, todo escritor
brasileiro vai ter seus exemplares consigo, comprar com a editora ou comigo que
é realmente incentivar a literatura independente desse país!
Carioca de nascimento,
capixaba de criação, Gabriel Alvarenga é escritor, psicólogo e professor, e
mistura arte e vida em seu percurso. Autor de quatro livros de literatura, O
bem pela raiz (2012), Lúcia se fecha (2012), Supernova (2017)
e O cubo e outros contos cariocas (2023), encontra na literatura em
campo de liberdade, ousadia e afetividade onde contar histórias se apresente
como potência da vida, desafio estético e encontro explosivo.
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