Iberê Camargo. Um homem valente - RESENHA por Gutemberg Armando Diniz Guerra

 




RESENHA

LACERDA, Nilma. Iberê Camargo. Um homem valente. Porto Alegre, Mínimo Múltiplo Editora, 2022.

Gutemberg Armando Diniz Guerra

“Os escritores têm um dicionário à disposição, e é às nossas tintas que eles recorrem para dar o tom de um cenário, um lugar.” (p. 15).


Conheci Nilma Lacerda primeiro pelas falas de minha irmã e madrinha que habitara no Rio de Janeiro durante duas dezenas de anos. Lecionando juntas em uma escola pública com o emblemático nome de Anísio Teixeira, elas alfabetizavam e desenvolviam atividades de leitura e escrita com jovens de origem humilde, filhos de operários e empregados com trajetórias comprometidas pela necessidade de sobrevivência difícil de ser obtida no mundo desigual deste país em que vivemos. Acompanhei os registros do exercício do magistério dessas professoras em várias fases, o que se materializou, entre outras coisas, em um livro que ganhou o mundo e foi muito usado para reflexão e oficinas no Brasil (MIRANDA, SANTOS, LACERDA, 1995). Eu mesmo fizera no ano seguinte ao do lançamento uma resenha sobre essa obra, publicando, no Caderno do CEAS (GUERRA, 1996), o texto que até hoje continua sendo lido e referido nos sites em que a disponibilizei sob o título “A linguagem do coração”.

Pouco depois conheci pessoalmente Nilma Lacerda e seu marido em uma viagem que ela fizera a Paris. Eu estava fazendo o doutorado e, em uma tarde de domingo, assistimos à missa na Notre Dame, ouvimos a execução do majestoso órgão executado do coro daquele magnífico templo. Nilma Lacerda, muito emocionada com a música, queria conhecer o Hotel Esmeralda, localizado na Place Saint Jean le Pauvre. Queria porque Esmeralda era o nome da personagem pela qual o corcunda de Notre Dame se apaixonara e que estava marcada no cenário da obra ficcional. Esse detalhe nunca me saiu da memória porque me revelava, ali, naquele momento, uma atenta leitora do mundo, mais do que de uma obra qualquer escrita onde quer que fosse. Depois li outros trabalhos da Professora Nilma e fui me inteirando de sua consistente produção literária e carreira acadêmica feita na Universidade Federal Fluminense e outras do Rio de Janeiro e inserções internacionais.

A leitura desse livro sobre Iberê Camargo nos revela a linguagem das cores como se elas passassem a existir a partir desse banhar de olhos nas palavras que nele vêm plantadas, descrevendo paisagens e sentimentos, desde a primeira página, no início do texto. Não seria pouco se eu dissesse que o livro é um diálogo intenso entre literatura e pintura, mas ele é muito, muito mais do que isso!

A professora Nilma Lacerda com sua vasta experiência no uso, ensino e aprendizagem da linguagem falada, lida e escrita com crianças, adolescentes e adultos, se espraia nessa obra sobre o pintor gaúcho com uma instigante abordagem e desnudamento do que poderiam ser os sentimentos desse homem polêmico e polemizador. Expondo Iberê Camargo a partir de uma espécie de autobiografia, ela encarna o autor em uma espécie de psicografia e faz que os nossos próprios sentimentos contraditórios aflorem com uma força desconcertante. Ao expor Iberê, ela nos eviscera, nos põe a nu com nossos altos e baixos. Os incômodos que ele (ou ela) expressa são de uma íntima ligação com o que cada um de nós sente e reprime.

Embora em estilos completamente diferentes, meu aprendizado ao ler esse livro me deu a sensação de poder compará-lo a Cartas ao Theo, de Vincent Van Gogh, porque se pode ter uma ideia muito clara do processo criativo do gaúcho Iberê tanto quanto do impressionista holandês no seu material publicado anos depois de sua morte, por sua cunhada.

O texto Iberê Camargo, um homem valente é escrito na primeira pessoa, como se fosse o próprio Iberê a descrever e refletir sobre sua vida e sentimentos, o que torna o romance demonstrativo do esforço que a autora deve ter feito para se colocar no lugar e expressar os sentimentos do artista.

Dois personagens dominam as cenas: o pintor Iberê e Euclédio, um alter ego que vive a lhe questionar os atos e contra os quais o artista tenta se contrapor o tempo todo. Embora reconhecendo a pertinência das ponderações de Euclédio, Iberê se irrita profundamente com ele, levando-o muitas vezes a explosões de comportamento, atirando-lhe objetos que se quebram contra portas, janelas e paredes do ateliê em que trabalha. O ateliê é o único espaço a que Euclédio tem acesso, o que o vincula visceralmente ao ambiente e tempo da criação, momentos ímpares da intimidade do pintor, em que partilham vinhos e verdades. A rebeldia de Iberê, as reações à flor da pele, na ponta da língua sem controle e os pensamentos extremados o identificam com o que a crítica e o livro dizem dele. Ele enfrentava o mundo com suas espátulas e pinceis, assumindo o ônus de suas revelações e desnudamentos.

Talvez seja nas cenas em que se digladia com Euclédio que o adjetivo valente tenha se ancorado, embora exista na biografia real do pintor, e não no livro, um fato de violência muito marcante e com versões polêmicas que o lançaram em dificuldades profissionais e sociais. Em uma rua do Rio de Janeiro, Iberê Camargo matou a tiros, um homem que o agride após interpretar que o pintor estaria disposto a intervir em sua conversa, intempestiva e violenta, com sua mulher. Embora absolvido no processo, Iberê Camargo ficaria marcado por essa ocorrência policial que lhe dará prejuízos materiais e imateriais, mas o manterá vivo e irreverente como sempre quis e foi, além da valentia que lhe colou como adjetivo. Ao buscar informações sobre o fato de o artista andar armado, soube que o revólver 38 que portava tinha sido um presente de um militar amigo, dois anos antes do assassinato. Sempre muito reticente com esses diabólicos artefatos, fiquei a pensar com os meus botões, lembrando um ditado comum aos antigos: Arma? O cão arma! Essa frase pode ser dita de várias formas, mas sempre alertando para o perigo que pode ser o ter essa geringonça por perto.

Uma das partes que mais me incomoda, agita e me faz refletir, no livro, é quando Jimena entra na vida do pintor como uma filha que ele é praticamente obrigado a adotar, arrebatando o amor incondicional que todo rebento impõe. As defesas e justificativas que faz de cada ato da mulher-menina-de-juízo mole são comoventes. A apreensão que vibra nas suas falas e reflexões sobre os gestos fora da normalidade, do senso comum e da racionalidade dominante que Jimena inspira são de uma enorme densidade existencial. Qualquer pai pode se ver ali, no lugar dele, a defender ou tentar entender seus filhos na relação deles com o mundo, desde o mais tranquilo comportamento ao mais escatológico.

As figuras femininas no romance são coadjuvantes de muita importância, mas as referências a Maria, sua esposa, são de destaque considerável. Se Euclédio é o elemento crítico e provocador das reflexões de Iberê, Maria é o seu ponto de equilíbrio, de ponderação e sensatez.

Nilma Lacerda encarnada Iberê construiu uma obra com a intensidade que o artista deveria ter quando em sua fase criativa, angustiado, usando termos vulgares e expressões de irritação, porque ali vai o que qualquer um pensa e diz nos momentos de desequilíbrio emocional provocados por eventos do cotidiano e premência por dizer o que o sentimento lhe exige.

O livro é rico em ilustrações acessíveis por QR Code, sendo uma com música composta e interpretada por Adriana Calcanhoto e 23 com pinturas, montagens de telas e estudos em desenhos do autor, conforme o quadro que segue. 

QR Code

Página

Título

1

11

Tons. Pseudo vídeo com música e voz de Adriana Calcanhoto

2

12

Retrato de Adriana Calcanhoto

3

12

Retrato de Adriana Calcanhoto

4

29

Estudo para ilustração do conto O relógio

5

38

O Sanfoneiro. Desenhos. 8 itens.

6

40

Guria

7

48

Riacho

8

48

Sem título. [Casario]

9

59

A idiota

10

60

No tempo

11

67

Tudo te é falso e inútil

12

84

Crepúsculo da Boca do Monte

13

109

Lapa

14

109

Crepúsculo da Restinga Seca

15

123

O homem da flor na boca. Um ato de amor.

16

158

Ciclistas

17

158

Mulher e Manequim

18

164

No vento e na terra I

19

164

No vento e na terra II

20

165

Minha gente

21

168

Solidão

22

180

Grito

23

181

Dinâmica dos carretéis

24

181

As idiotas

 

As pinturas de Iberê Camargo são incômodas, sim! As cores de sua preferência, principalmente nas ilustrações usadas nesse livro, são desconcertantes. Ora escuras, ora coloridas, demonstram as fases por quais passou, quais as lógicas que assumiu como predominantes em cada uma delas, e que objetos tomou como veículos semióticos, como as bicicletas e carretéis. Olhos fundos, pés descalços, rostos disformes, fantasmagorias e induções a misturas entre o real e o imaginado se mesclam em seus trabalhos.

Se eu tivesse que me manifestar se gosto ou não de sua obra, pediria e me daria mais tempo. Não é algo que me mobilize de imediato para a tranquilidade e a aceitação. Ao contrário, me faz ficar duelando para descobrir as disputas que minha formação cartesiana e minha experiência limitada não deixa ver, mas que estão ali, certamente, pois que a cada visada, descubro e sinto palpitações embutidas nas cores e contrastes de luz e sombras.

Considero obrigatória a leitura desta obra, principalmente para os interessados em artes e que se aprofundam em experiências sensoriais e intelectuais nos cursos de graduação e pós-graduação. Que se lancem ao livro e se deixem atormentar por ele! Não se decepcionarão!

Referências.

GUERRA, G. A. D. A linguagem do coração. SALVADOR: CEAS, 1995 (RESENHA). No. 162 p. 93 a 95. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/274061949_A_linguagem_do_coracao

MIRANDA, Regina L. F. de; SANTOS, Pensilvânia D. G. e LACERDA, Nilma G. A língua portuguesa no coração de uma nova escola. São Paulo, Ática, 1995. 172 p.

VAN GOGH, Vincent. Cartas a Theo. Porto Alegre: L&PM Editora, 1997.


Comentários

  1. Caríssimo irmão de ideal literário e amigo Professor Doutor Gutemberg Guerra:

    Eu insisto. Publique em livro as riquíssimas resenhas que escreve. Não sei se já lhe disseram isto, se não o disseram, eu lho digo agora: o senhor, meu ilustre amigo, embora talvez não tenha a pretensão de ser, é um competente crítico literário. Suas resenhas são excelentes. Dá gosto e vale a pena ler cada uma. Parabéns! E muito obrigado pelo partilhar!

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  2. O leitor é um ser corajoso. Enfrenta um trabalho de leitura, buscando a totalidade de sentidos na trama textual e deve, ao final, decidir: gostei ou não? Mais fácil será a tarefa da autora? Não gosto da pintura de Iberê, e sei que é um cálice ao qual não me posso furtar, parte de minha condição humana. E que acerto em sua percepção, caro Gutemberg: encarnei Iberê, ao menos me curvei, “cavalo” de algo que me ultrapassa em força e genialidade. Minha gratidão por sua leitura perspicaz, íntegra.

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