O Rei dos Papagaios no céu de Belém - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 



O Rei dos Papagaios no céu de Belém

 

Gutemberg Armando Diniz Guerra

 

Os ventos de uma tarde de julho levaram Cobra, o Rei dos Papagaios. Morador de um sobradinho modesto na rua Ó de Almeida, entre a Travessa Quintino Bocaiúva e a Avenida Visconde de Souza Franco, ele se notabilizara e era muito conhecido na cidade e no Estado do Pará. A pintura colorida na lateral de sua residência, ilustrando a atividade em que era mestre, está desbotada, mas ainda identifica o que ali se vendia.

Da última vez em que lá estive, um jovem me atendeu. Perguntei pelo Cobra e o que me foi dito é que ele não estava no momento. Não dei prosseguimento ao diálogo temendo o pior. Adquiri as pipas que os meus rapaz e menino queriam para inaugurar suas férias em Mosqueiro e no Portal da Amazônia. Linha com cerol ali já não se vendia, nem linha branca. O vendedor me indicou um local em que eu pudesse encontrar o necessário fio, na Casa Mandarim, lá para as bandas do Bairro de Nazaré. Fomos lá e nos munimos de carretéis suficientes para levar um tempo de distração ao ar.

As aparições de Cobra nas imediações de sua casa nos últimos meses eram na esquina da sua rua com as margens da Doca de Souza Franco. Às tardes, quando o sol amainava, ele sentava em um banquinho nas proximidades de uma banca de venda de acessórios para aparelhos celulares e ficava ali olhando o movimento das pessoas chegando e saindo do Shopping Center, comprando lanches dos vendedores ambulantes. Na expressão distante e cansada, marcada pela idade, certamente pululavam muitas recordações de sua infância, adolescência, juventude e maturidade vividas à beira desse canal hoje revestido e em obras para uma completa repaginação. Era uma personagem conhecida de muitos que o saudavam, como eu mesmo, todas as vezes em que o via.

Recebi a notícia de sua viagem por um vizinho de condomínio. Eu falara que estava levando os filhos para empinarem pipas no Portal da Amazônia. _ O Cobra morreu! Falou o vizinho. _Quando? Perguntei surpreso! _Ontem, no sábado! Afirmou categórico! _Oh! Que pena! Estive na casa dele no início do mês, comprando papagaios para os meninos. Mas ele não estava lá na hora em que eu fui! Continuei falando de como era muito raro que não estivesse lá na hora em que íamos comprar seus objetos alados. Ele expunha com orgulho suas artes e conversava com o rosto iluminado por um sorriso sobre as possibilidades que aquelas maravilhas poderiam oferecer.

Na primeira vez em que fui lá em sua casa adquirir papagaios para meu filho mais velho, comentei sobre minha infância, em Salvador, quando fabricávamos arraias quadradas e rabadas de algodão para nos divertirmos e ganhar uns trocados que nos permitissem ir ao cinema, comprar guloseimas como picolés, tabocas e quebra queixos. Cobra falou sobre suas crias, ministrando uma aula magna sobre cores, tamanhos, adequação de usos por idade, direção do vento, lugares. Seu ar de felicidade ao falar dessas coisas que o vento leva fazia dele uma espécie de divindade.

Inevitável para mim a evocação de personagens e eventos na Ribeira. Edson Negão era adulto, morador de um edifício construído por seu pai, engenheiro reconhecido no bairro. Esse edifício abrigava toda a numerosa família. Os filhos iam casando e ocupando aquele prédio com quatro andares e uma cobertura que era completamente aberta e usada para que um de seus filhos fizesse uso com suas arraias quadradas em formato de X, invariavelmente em preto e branco, apelidados por nós, não sei porque, de loides. Consultando o dicionário vejo “melhor” como um dos significados. Talvez fosse isso mesmo. Ele era o melhor, o mais temido, o imbatível.R

O Reginaldo Mourão, o Cobra partiu numa tarde ventilada de sábado quando o céu estava coalhado de papagaios, pipas, rabiolas e cangulas. Deve ter se misturado com elas e assim vai estar durante muito tempo na memória dos meninos já não tão meninos de Belém!

 


Variações: revista de literatura contemporânea 
XI Edição - outras margens, nenhum limite 
Edição de Marcos Samuel Costa

2024

Comentários

  1. Caríssimo amigo Prof. Dr. Gutemberg, meus sentimentos pelo desenlace do seu amigo Cobra! Puxa vida, que pena! Era, não tenho dúvida, uma pessoa boa, gente como a gente. A despeito disso, parabéns pela crônica. Excelente! Lendo-a, viajei pelas ruas e demais locais citados de Belém. Vi mentalmente o espetáculo no céu do Portal da Amazônia: papagaios, pipas, rabiolas e cangulas voando para êxtase da molecada. Isso é vida! Parabéns, mais uma vez! E muito obrigado pela partilha! Forte abraço.

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