ENTREVISTA COM ENRIQUE ANDRADE

 

Foto de Bruna Pacheco.

Entrevista concedida por Enrique Andrade para Marcos Samuel Costa, da Revista Variações, em 17 de agosto de 2024.


01- Enrique, fale-nos um pouco do teu processo de escrita. E, além disso, conte-nos também sobre você, quando esta escrita começou e por que ela começou?

 

E. A. -  Bem, escrever é sempre um processo de se mostrar em praça pública. É como fazer uma cirurgia num banco e convidar os passantes a utilizarem o bisturi. É deixar-se conduzir por mãos alheias. Depois de publicado, já não tem mais volta. A criança está no mundo e sobre ela não tenho nenhum controle, ao menos interpretativo. Isso não me deixa desconfortável. O inverso. Tenho prazer, eu escrevo para isso, tocar e ser tocado. Escrevo para o outro e minha escrita ganha forma e vida na leitura, interpretação, prazer, desgosto do outro, da outra. Escrevo em algum sentido para me curar, ou, no mínimo, lidar com as minhas feridas.

Escrevo em todo lugar e a qualquer tempo, no celular, gravando um áudio quando vem uma inspiração ao caminhar e não posso parar, no ônibus, sem dúvida meu maior ateliê poético e visual. Como multiartista, meu ateliê é onde estou. E o início da minha escrita está ligada a isso, desta forma, não sei lhe dizer quando iniciei, mas a minha mais antiga poesia que tenho recordação foi feita na escola, no sétimo ano, um pequeno verso de cordel. Depois de mais de sete anos, decidi voltar neste verso e fazer uma poesia, chamei de “Minhas intimidades com São José”.

 

02- Como se manifesta a sua escrita, quais caminhos, os tempos de escrita e pausa. Quem é o escritor Enrique Andrade?


E.A. - Meus tempos de escrita são plurais, como a vida. Tanto faz eu escrever a semana toda, todos os dias, ou demorar meses para escrever. Escrever não é inspiração que vem do nada, sou bem contrário a isso. O que chamam de inspiração podemos chamar de experiência, sensibilidade, oportunidade, suor, paciência, raiva e uma dose de persistência. É sentar na cadeira e esperar, olhar, pensar, ter ócio. É pegar o ônibus e trabalhar outros trabalhos para além da escrita. A poesia que recebo vem do chão que piso, é parte de como encontrei para curar as feridas do corpo que atravessa essa vida mais que querendo sobreviver. Sobreviver me cansa, eu quero viver. A poesia que escrevo nasce dos e das minhas ancestrais, nasce do sentimento de dançar a vida. Nasce de Maria Inês, Quintilha, Josefa, Cosma, Feliciano e tantos outros e outras, das quais não conheço o nome, mas caminharam muito para eu estar aqui. Minha escrita é também parte da minha retomada e luta com a Terra.

Sou um trabalhador das palavras, um operário da arte, como tal, defendo o ócio, não como privilégio de poucos, mas direito fundamental e irrestrito de muitos. É necessário vadiar, como bem nos ensinou o mestre Nego Bispo. E escrever é trabalho, mas também pode ser vadiar (risos). Não precisa ser um ou outro, pode ser um e outro. Também defendo a remuneração justa por se trabalhar com as palavras e com a arte. Infelizmente, o mercado editorial e as plataformas virtuais de venda enriquecem à custa dos autores e das autoras.

 

03- Fale-nos do seu novo livro, quais percursos o levaram até ele ou como ele chegou até a ti?

 

E.A. - Cura d’água é o próprio caminhar, é uma junção de dias, entre sol e chuva, escrevi e desenhei em muitos pedacinhos de papel, no celular e no computador. Caminhei até ele e ele até mim. Ele foi partejado depois de outro livro que não nasceu, o Liberte-se. Cura d’água é a junção de muitos de mim, do trajeto cotidiano para ir trabalhar nas escolas que dei aula, na livraria em que fui livreiro, nas organizações sociais onde atuo e no meu trabalho de historiador. Cura d’água é um desaguar daquilo que sou e pretendo ser. Já não é mais meu, mas de toda pessoa que o quiser. Este livro é um presente dos meus ancestrais, das minhas matriarcas indígenas, minhas raízes, é também retomada. É um tecer dos tapetes da minha vó, um moer a cana de um avô e o beber a cana de outro. É o trabalho coletivo da minha família, dos meus parentes, dos amigos e amigas, gente que ousa acreditar. Quem o pegar nas mãos, sinta o que tiver para sentir e o tenha como incômodo, como uma voz doce que sabe gritar. É um livro de poesias, mas pode não ser. É um convite aberto.

 

04- Buscas uma escrita que se aproxime do que ou que se afaste do quê?


E.A. - Quero minha escrita afastada de tudo que desrespeita a dignidade da vida, o direito de viver e ser, não só dos seres humanos, mas de tudo que existe e está ao nosso redor. A Terra é viva e é Mãe e Irmã, companheira de caminhada no grande universo. Do que me aproximo? Há, da paixão, do amor, do prazer, da vontade, do medo, da dor, me aproximo da vida, tentando ser o menos medíocre possível (risos). Isso não é tarefa fácil, viu! Envolve permitir-se. É necessário viver sem querer servir para algo ou alguém, só viver é algo fascinante, como bem lembra o parente Ailton Krenak. Viver não cabe na vida, viver não cabe em nada!

 

05- Quais são as principais referências no processo de escrita desse livro?


E.A. - As pessoas que me cercam, cada qual na sua expressão, incômodo, felicidade. Minhas referências são meus e minhas educandos, amigos e amigas, parentes, minha vó e vô, pai, mãe, madrasta, irmão, irmã, tios e tias, meus primos e sobrinhos. Minhas referências são as árvores, as águas, a vida, os encantados, as plantas. Minha referência é João Cabral, é Josué de Castro, Conceição Evaristo, Ailton Krenak, Márcia Kambeba.

 

06- Pode indicar uma playlist para esse novo trabalho?


E.A. - Eita! Tarefa difícil, acho que música é de cada pessoa, é como se apaixonar perdidamente. Na verdade, a vida é assim: a gente é movida pelo que nos apaixonamos. Mas tentarei listar algumas que gosto muito, são elas: Território Ancestral, de Kaê Guajajara; Cio da Terra, de Milton Nascimento e Chico Buarque; Solo Le Pido a Dios, de Mercedes Sosa; Vou Gargalhar, de Jackson do Pandeiro; Eu Moro Numa Floresta, da Cacique Pequena, Yáyá Massemba, de Capinam e Roberto Mendes, na voz de Maria Betânia.

 

07- Onde comprar teu livro novo?


E.A. - Vocês podem comprar o livro comigo presencialmente ou pelo meu Instagram @enriquesem.h, pelo site da Editora Folheando e, logo mais, nas livrarias de Recife.


Filho da mata e do tempo. De Camaragibe, Enrique Andrade está em constante retomada e faz do seu caminhar flecha certeira, poética, latente, afetiva e estética. Atua como educador, historiador, multiartista, poeta e está curador independente, realizando projetos de guerrilha expositiva. Como multiartista, vivencia experiências no Ateliê Casa 97, com foco no campo da performance, instalação, arte objeto, pintura, modelagem e poesia. Realiza mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, com bolsa pela CAPES. É um dos fundadores da Ciranda Curatorial, projeto de assessoria em curadoria e exposições. Sonha por demais e faz do sonho combustível por dias mais felizes e melhores. Sua arte não é sua, mas se faz na coletividade, como engasgo e gargarejo de incômodos.


Variações: revista de literatura contemporânea 

XII Edição, ano III - lâminas, línguas e Eros

Edição de Bruno Pacífico

2024

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