ENTREVISTA COM PATRÍCIA MARCONDES DE BARROS
Entrevista concedida por Patrícia Marcondes de Barros para Andreza Modesto, em 23 de setembro de 2024.
1 - Patrícia, sua pesquisa recente sobre Guilherme Mandaro, poeta dos anos 70, contribui significativamente para a compreensão da literatura marginal e da contracultura. O que despertou seu interesse pela literatura marginal?
O interesse pela literatura marginal dos anos 70 surgiu a partir dos meus estudos sobre a contracultura e sua capacidade de desafiar as normas estabelecidas. A poesia marginal, a que me dedico em pesquisa, foi expressa em jornais, revistas de cunho independente e livros produzidos em mimeógrafo relacionados intimamente com as propostas da contracultura tendo como característica o fazer-se à margem do sistema social e cultural vigente. Não apenas renovando as formas estéticas, mas provocando e propondo mudanças nas próprias práticas culturais, nos modos de conceber a literatura, fora do cânone, do sistema editorial e mercadológico.
A dialogia antropofágica modernista que devorou outras manifestações artísticas do presente/passado, nacional/estrangeira, desvelou formas diferenciadas de se viver e fazer as críticas ao sistema, embalados ao som do rock na perspectiva sensorial da poesia performática: “corpo na ação”, linguagens da vida moderna. Comecei a me aprofundar na obra desses poetas marginais que, por meio de novas linguagens, não só documentaram a realidade de quem viveu sob uma ditadura militar, mas também desafiaram o status quo abrindo espaços para novas perspectivas culturais e de resistência. Dentro deste espectro de autores marginais, me interessei pela poética de Guilherme Mandaro e o que me fez fazer a pesquisa foi o fato de não ter nada escrito essencialmente sobre ele.
O objetivo principal foi então o de introduzir o poeta Guilherme Mandaro a um público mais amplo, considerando o alcance limitado de sua obra até então. Em linhas gerais, os dois primeiros capítulos da pesquisa contextualizam historicamente a produção do poeta em meio à ditadura militar e à contracultura, enquanto os dois últimos tratam de sua biografia e análise da produção poética.
2 - Como a performance contribui para disseminar e popularizar a poesia marginal, atraindo audiências mais diversas ou amplas em comparação com a poesia tradicional?
A prática performática atrai audiências mais diversas ao proporcionar uma experiência dinâmica e envolvente, e ao situar a poesia marginal dentro de contextos culturais e sociais mais amplos. Elementos estéticos, como linguagem, imagens e performances, são fundamentais para a formação e contestação das ordens políticas, desafiando a ideia de que a política e a arte devem ser separadas. A arte tem o potencial de criar espaços de dissenso e questionamento, o que é intrinsecamente político. Das performances dos coletivos poéticos dos anos 70, moduladas pelo desbunde, aos slams de poesia da atualidade, há a ocupação de espaços para que vozes marginalizadas e minorias possam expressar suas histórias e perspectivas. No Brasil, nomes como Ryane Leão, Luz Ribeiro e Emerson Alcalde são alguns dos muitos poetas performáticos que têm se destacado nesse cenário. Vale ressaltar que as novas tecnologias e plataformas digitais desempenham um papel importante na divulgação da expressão poética e na formação de novos públicos.
3 - Patrícia, como você percebe a relação entre a poesia marginal dos anos 70 e a poesia marginal periférica dos anos 90? Há continuidade ou transformação nas temáticas, estilos e contextos culturais?
A linguagem poética, inserida em um contexto histórico e linguístico, pode ser considerada um gesto de resistência e subversão ao sistema instituído. A poesia marginal dos anos 70 e a poesia periférica atual diferem em vários aspectos, embora compartilhem algumas semelhanças em sua essência contestatória e de resistência. No século XXI, a potência política intrínseca à poesia marginal dos anos 1970 continua a ser subestimada e, muitas vezes, descontextualizada, tanto no âmbito acadêmico quanto nos movimentos literários periféricos.
Essa marginalização reduz a complexidade dessa poesia a estereótipos simplistas, como a visão de que se tratava apenas de uma expressão sem importância estética e histórica advinda de “jovens burgueses desertores de causas sociais”, envoltos pelo americanismo advindo da contracultura e, assim, sua revolta não teria validação como movimento social e político. Essas percepções variam conforme as caracterizações doutrinárias das estruturas políticas estabelecidas, perpetuando uma compreensão dualista inerente ao sistema dominante que contrapõe o estético ao político.
Esse pensamento dualista continua a dominar o cenário polarizado da política tradicional e dos cânones artísticos e acadêmicos, persistindo na eleição "dos temas que são importantes dos que não são", assim como na definição do que é considerada poesia ou não. Esse paradigma estabelece uma hierarquia, onde a estrutura política é compreendida como uma esfera antagônica à estética e, consequentemente, como mais importante na sociedade. Essa perspectiva limitada não apenas prejudica a compreensão da poesia marginal dos anos 1970, como também perpetua um distanciamento entre a arte e a política que pode ser enriquecedoramente explorado e compreendido.
Jacques Rancière* (2009) propõe uma emancipação estética que vai além da mera apreciação da arte, defendendo que a verdadeira política é aquela que perturba as categorias convencionais e desafia as formas estabelecidas de percepção. Essa perturbação ao estabelecido pode ser encontrada nos poetas marginais da geração de 1970, abertos a experimentações e desconstruindo a ideia de linguagem, refletindo uma postura anti-institucional e anti-hierárquica. A circulação das obras dos poetas marginais frequentemente ocorria por meio de publicações alternativas produzidas em pequenas editoras independentes. Esse método de distribuição estava em consonância com a postura desse grupo de jovens poetas, contribuindo para a disseminação das vozes contraculturais e foi, também, uma resposta direta ao contexto político da época.
Já a poesia marginal periférica, que começou a ganhar visibilidade a partir dos anos 90, está enraizada nas periferias urbanas e nos movimentos sociais. Poetas como Sérgio Vaz, Ferréz e os participantes dos coletivos de poesia marginal das periferias de São Paulo, como o Sarau da Cooperifa, abordam temas relacionados às vivências de marginalidade social, racial e econômica. São literaturas em margens diferentes e ambas são importantes dentro do entendimento da história literária e história do Brasil. Estou organizando, junto ao professor Cleber José de Oliveira (UFGD), para este segundo semestre de 2024, duas edições temáticas na revista científica Boitatá** - Revista do GT de Literatura Oral e Popular (UEL), dedicada ao tema, destacando os cenários diferenciados da literatura marginal brasileira com entrevistas realizadas com os poetas Nicolas Behr e Emerson Alcalde, representantes da poesia marginal em diferentes contextos.
A alta demanda de artigos recebidos pela revista no dossiê intitulado: “Literaturas marginais e periféricas: tensões, interseções, rupturas e resistências” refletem a potência dessa poesia na ocupação dos espaços. Como disse Torquato Neto um dia: “Acredite na realidade e procure as brechas que ela sempre deixa. Primeiro passo é tomar conta do espaço”.
* Obra citada: RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. 2a Ed, São Paulo; Editora 34, 2009.
** Revista Boitatá: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata
A professora Patrícia Marcondes de Barros leciona no Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. É Doutora em História (UNESP) e em Estudos Literários (UEL), com pesquisas de pós-doutorado (Estudos Literários - UFU, Literatura, Cultura e Tradução - UFPEL) sobre a contracultura no Brasil e a literatura marginal e periférica. Com uma trajetória acadêmica marcada pela dedicação ao estudo das expressões culturais de resistência, ela busca compreender as dinâmicas sociais e políticas que envolvem a produção literária fora dos circuitos tradicionais. Nesta entrevista, discute as implicações da literatura marginal dos anos 70 e a periférica atual, abordando como essas obras questionam e desafiam as narrativas hegemônicas, ampliando a compreensão sobre a identidade, a memória e a resistência cultural.
Variações: revista de literatura contemporânea
XII Edição, ano III - lâminas, línguas e Eros
Edição de Bruno Pacífico
2024
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