Resenha: Tricô - Ney Campello por Gutemberg A. D. Guerra

 



RESENHA

CAMPELLO, Ney. Tricô. Simões Filho: Editora Kalango, 2024.



Conheci Ney Campello em circunstâncias familiares de vizinhança, ele muito jovem e eu amadurecendo em combates nem sempre exitosos como agrônomo junto a camponeses empobrecidos pelo interior de nosso país. Convivemos pouco em nossa aldeia, a Ribeira, mas pude ver parte do seu frutífero trabalho como líder do Grupo Experimental Ribeira Artes – GERA, no início dos anos 1980. Era um trabalho eclético e engajado, inspirado em Augusto Boal e Paulo Freire, tendo como integrantes jovens moradores da península itapagipana.

Não me sai da memória que ele e integrantes do GERA estiveram presentes em uma manifestação de lavradores na cidade de Alagoinhas, quando eu trabalhava na Diocese. A Igreja Católica assumira o compromisso de estimular a criação de mecanismos de negociação para que os posseiros das terras supervalorizadas pelo projeto de abertura da Linha Verde tivessem alguma representatividade e possibilidade de defesa. Era um tempo em que manifestações políticas e culturais sofriam repressão policial explicitamente abertas, com a violência comuns aos tempos de chumbo e cassetetes. Ele e sua trupe foram testemunhas daquele momento de meu engajamento pessoal, tanto quanto eu fui de suas representações no GERA e na vereança que colheu e exerceu como resultado de sua expressão de descontentamento naquele mesmo contexto ditatorial. Esses elementos biográficos podem ser pistas importantes para compreender a densidade dos conteúdos explorados por Ney Campello em seu exercício literário que vem aqui resenhado.

Agora (2024) nos reencontramos na leitura desse livro que ele publica reconhecendo sua idade sexagenária e uma maturidade eivada de muita sabedoria. Estranhei o título do livro por que no meu imaginário a arte do tricô remete a lembranças de mães e avós em atividade solitária, silenciosa, paciente. Senti-me obrigado a me informar mais sobre tricô e croché, passando a saber que este é mais complexo do que aquele por utilizar duas agulhas enquanto o segundo exige apenas uma e é considerado mais simples na sua execução. 

Na leitura que fui fazendo do texto, fiquei mais intrigado ainda, tentando associar aquela tessitura com a coletânea poética. Para uma operação elaborada como é a escrita, o que seriam os pontos do tricô? Em uma primeira interpretação intuitiva, associei o título ao fato de estarem sendo utilizadas agulhas, linhas, pontos e nós. As agulhas digitais produzem linhas que seriam as frases e os pontos insistiram em minha interpretação como os encontros vocálicos e consonantais. 

Na medida em que fui avançando na leitura fui vendo e tomando consciência do uso de um universo vocabular amplo, variado, utilizado por Ney Campello com maestria e completo domínio. As ideias vão se entrelaçando e encantando o leitor de tal forma que, ao findar o conjunto do tecido, a vontade é de voltar saboreando as sensações e reflexões provocadas ao longo desse exercício literário rico, pleno de proposições e inspiradoras confissões existenciais.

Desde a Apresentação e Prefácio assinados por pessoas de reconhecida competência no campo da literatura como a jornalista Tina Tude e a poeta Ametista Nunes até as ilustrações de Caó Cruz Alves, o livro prima pela qualidade da elaboração. O menino da Ribeira, identidade que os desta tribo georreferenciada ostentam com orgulho, esbanja e esnoba das palavras combinando o uso da dialética com recursos estéticos que prescindem da rima e da métrica tradicional, embora elas apareçam com frequência e nem sempre com toda a adequação convencional que poderia ter se a prioridade fosse não ter nenhuma quebra. Ao contrário, o que o poeta prega e pratica é a liberdade e a negação da mesmice que a obediência às regras conservadoras exigem desde as primeiras atividades escolares e esforços de enquadramento que a educação educacional formal incute aos curumins. 

Filho da professora Diná, a rebeldia revolucionária empunhada por Ney Campello vai se expandir em sua militância política, cultural, administrativa e amorosa, o que ele assume nessa obra inaugural com determinação e uma boa dose de convicção e humor.

São 44 poemas em prosa, muito bem representados por aquele que dá título ao conjunto. “Importa tecer, não importa quando!” Embora dizendo isso, ali mesmo, na página 52, ele demonstra como não consegue fugir da rima ao escrever: “É assim que ando sendo, à noite me teço, de dia me refazendo.” Para disfarçar ele faz versos sem a métrica convencional, mas com um ritmo e melodia dados pelos sons ecoando em simetrias ou assimetrias sonoras nas linhas e pontos que vão entrelaçando. Ali se declara que a elaboração tem muito de trabalho, esforço intelectual e um grau elevado de busca da perfeição e de fuga dos enquadramentos estéticos.

O manifesto revoltoso se revela em “Normose” proclamando seus incômodos: “A normalidade é o último cárcere que minh’alma suporta. Por isso, não hesitarei em romper os grilhões dessa infame porta!” (p. 64).

Amores, desamores, rebeldias, confissões e proclamações de crenças e habilidades permeiam este livro de Ney Campello e estas qualidades o autorizam a prosseguir em duelos literários e existenciais em que se firmará como um dos bons e recomendáveis autores da constelação de imortais da Língua Portuguesa.

Não me arrisco a mais comentários do que estes que se projetam como suspeitos pelas razões biográficas que expus no início dessa breve resenha, mas espero que possa despertar a curiosidade e a busca pela leitura desse autor que se apresenta como promessa incontornável de quem gosta de mergulhar no vasto oceano da literatura. Leiam e me digam se concordam ou não com minhas avaliações!

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