DOIS POEMAS DE ANDRÉ PIÑERO
André Piñero.
a natureza dos múltiplos de três
o microcosmo das unhas nunca havia sido tão pequeno. me faz
pensar na distância do olhar que parece um arranhão e desprezar
a coletividade e a expressão “tons de cinza”. I won’t share you,
já dizia o babaca que inventou a antítese verborrágica da arte
versus o artista. afinal, existe como não ser egoísta em uma
Amazônia metade incendiada, metade asfaltada? e se sobrar
alguma porcentagem que caiba na ponta dos dedos, isso seria
errado do ponto de vista matemático, mas tem coisas sobre eu e
tu que eu realmente não acho que funcione no algoritmo da
divisão com exceção da estrutura da chave. ainda sobre o
egoísmo, o que era a música antes da invenção dela em 1980?
era somente o barulho de ondas quebrando ao sentenciar os
salões de festas que nunca poderíamos ir? eu nasci nessa época
e tu nasceste 10 anos ou 10 dias depois, por isso eu não canso de
falar de relógios quebrados ainda que outra pessoa já tenha
falado isso. a marca da camisa tem a ver com combinação de
cores opostas em uma mesa primária, quem sabe primal, então
vamos combinar assim: a ignorância gramatical me impede de
conhecer algumas palavras, pontuações e escrúpulos que não
querem que eu me alimente porque nem tudo é sobre fome e sim
sobre falar a mesma língua. tu entendes o que eu quero dizer
através do paladar. eu minto o tempo todo sobre essas cadeias
alimentares, sobre a minha coleção mental de discos e falo de
coisas que eu não deveria pra manter meus dentes ocupados, os
gestos precisos pra esquecer das unhas e, por que não, dos
arranhões novamente. porque eu não sei qual é a pronúncia
correta do teu nome, qual o ônibus que passa pela rua da tua
casa, teus pares de sapatos preferidos ou o desenho que eles
deixariam na minha pele. a minha única verdade é a anatomia da
nuca, a minha única ciência são as gengivas taxativas e o lado
de fora dos relacionamentos. eu não queria que as coisas fossem
somente sobre sexo, não somente sobre o formato dos teus seios
que eu repito sem usar a boca ou da minha tensão que imita a
curvatura das tuas mãos. poderia ser sobre as conversas pré
internet, sobre a iconoclastia dos criminosos, sobre aquele sabor
rigoroso das placas de PARE; em como nós sempre estamos
querendo parecer preocupados, em como nós dizemos que
estamos preocupados. pagar a conta do aluguel e parecer
heterossexual não são grandes problemas quando só precisamos
ficar quietinhos em um canto tranquilo esperando morrer, na sala
dos livros e dos dicionários manchados na parede, meio brasa,
meio piche, na medida em que tua pele contrariou toda a
semântica da palavra “superficial”, porque quando uma pessoa
está dentro, ela nunca estará fora, ainda que transborde. falando
em dilatação e os cálculos teóricos do comprometimento, nós
somos físicos e esses dedos
essa bocaessas palavras sempre serão do mesmo idioma
e podem nunca saber
de nenhum dia a mais de fome pra eu te devorar
ou do nascimento da primeira árvore que se recusou a queimar
porque ela mesma
era o fogo
folhinha
a foto do calendário também mostra
a densidade de um tempo
que escorre impreciso
deixa rastro
e também gruda, quase seiva
pudera ser açúcar
mas o corpo é agridoce
também fluidos
também viscos
também frutas
que não sabem se são cítricas
ou passadas
comeria dois gomos de tua tangerina
se eu não estivesse atrasado
em tuas horas propícias
em tuas mãos dedicadas
nesses anos todos em que arrancaste
minhas sementes
seculares
André Piñero é um típico homem nascido na periferia de Belém do Pará; também professor, também poeta. Lançou seu primeiro livro, Copo americano, pela Editora Urutau em 2021. Alguns de seus poemas podem ser encontrados em revistas digitais como Aboio, Torquato, Acrobata, etc. Porém, cabe não se iludir com o etecetera. Reside na capital do Amazonas, Manaus.
Variações: revista de literatura contemporânea
XII Edição, ano III - lâminas, línguas e Eros
Edição de Bruno Pacífico
2024
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