Jesus papa chibé - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 


Jesus papa chibé


Gutemberg Armando Diniz Guerra


    Eu estava fazendo minha caminhada matinal nessa mangueirosa cidade. Saí vestido apenas de calção, camiseta e sapatos confortáveis para a atividade física prescrita na receita médica como fundamental, devendo ainda ser complementada por exercícios de fortalecimento dos músculos para evitar, prevenir e manter a qualidade de vida que desejo e preciso ter para criar os meus filhotes. Saí do apartamento, peguei o elevador de serviço para não incomodar os que saem para outras tarefas de trabalho vestidos mais formalmente: homens de terno, mulheres de vestidos alinhados e todos muito perfumados com essências especiais e caras. Contemplei o jardim bem mantido do condomínio, orquídeas florando e samambaias viçosas, fiz alongamentos antes de me dirigir à portaria de vidro e portas eletrônicas com câmeras que nos identificam por leitura facial. Saudei o porteiro de plantão com um bom dia e saí para a calçada à beira do canal da Doca.

Uma mulher quase menina amamentava um pequeno nos braços. Pouca roupa, os bracinhos nus, umas perninhas rechonchudas. Teria amanhecido ali mesmo, na marquise da entrada do condomínio? Ela me olhou, abriu a mão e sussurrou uma súplica de ajuda com um sotaque diferente! Dei-lhe bom dia e a desculpa de que não tinha nada a lhe dar porque, de fato, nada levo nessas caminhadas a não ser o celular e a recomendação de não dispersar a concentração quando cuido do corpo já não tão ágil por conta de uma idade que vai cobrando o seu peso. Olhei bem nos olhos daquela senhorinha mais menina que mulher, vi o menino sorvendo seu leite e sorri, amareladamente, envergonhado de não atender àquele pedido de sobrevivência. A gente sempre tem uma desculpa para não ser bom! Me senti como um Herodes, mas fui em frente!

O pequeno tinha uma aura dourada de felicidade porque seu mundo era imenso naquele colo e seio daquela senhorinha com cara de índia Warao ou de outra tribo qualquer desse mundão amazônico em que vivemos. Eu já não sentia os passos naquela calçada de pedras portuguesas com desenhos de sei lá que significados. A mente embaralhava tudo, mas eu continuava, como sempre nessas caminhadas, tentando dar minha meia dúzia de milhares de passos a preencher uma hora de terapia corporal.

Neste tempo pré natalino, ando fechando os olhos, escondendo o rosto, endurecendo o coração. Cada vez que vejo figuras assim fico imaginando se Jesus não teria nascido aqui, bem ao abrigo de uma marquise dessas. Tentei ser mais bucólico levando os pensamentos para um desses lugarejos construídos nos assentamentos em que andei trabalhando, recém ocupados, com currais cercando tracajás e jabutis, montículos de castanha do Pará, cheiro de cupuaçu caído e coletado para fazer um suco grosso com os caroços flutuando nele, tatus, coatis, cotias, guaribas, jacarés e araras fazendo o presépio do Menino Deus. Quem seriam os magos a saudar o menino profetizado? Claro que o negro Belchior seria algum quilombola amigo, do mesmo jeito que não poderia deixar de ser um indígena a compor o quadro com um terceiro líder vindo de algum outro oriente bombardeado pelas injustiças. Mas para que tanta tristeza nesse dia em que a Coca Cola pinta tudo de vermelho para lembrar sua cor de marketing e distribuir sonhos borbulhantes? Ah deixa para lá! Vamos pensar em Jesuscristozinho tomando chibé? E ao ficar mais taludinho, em vez de leite, tomado açaí, fazendo aquela máscara em torno dos beiços? Não precisa nem pensar na hora de trocar a fralda! Hummm! Esse lado humano de Jesus não agrada a ninguém, mas se ele tivesse vivido aqui, hein, como seria mesmo?

Tomaria banho de igarapé no Tucunduba, ou no Curió Utinga, que é mais limpinho e bonito?  Ou lá para as bandas de Santa Bárbara, nos igarapés sombreados, friozinhos naquela estrada de Mosqueiro? Tenho a impressão de que o lugar em que Plácido achou a imagem de Nossa Senhora de Nazaré marcava o nascedouro do seu filho e de Deus. Pena que parece que o igarapé secou, a imagem foi parar em outros lugares, mas a celebração nunca parou, depois de muitos anos, nessa linda festa que temos em Outubro.

Mas o menino, se tivesse crescido aqui, seria empinador de papagaios e curicas junto com os pequenos do Jurunas? Correria desesperado, de cabeça para cima, olhando e gritando: Oi o vai! Oi o vai!? Teria quantas vezes atravessado lá para o Combu ou qualquer dessas ilhas baixas para colher ingá, taperebá, bacuri, cutite, pupunha, tucumã, goiaba, jambo, melão de São Caetano e uxí? E nas ruas de Belém, com tantas mangueiras, será que ele resistiria a esperar elas caírem maduras ou ia inventar um jeito de derrubar ou colher os frutos para se lambuzar todo dessa gostosura que são as mangas da cidade? Da sua cidade! Da cidade de sua mãe Santa Maria de Belém do Grão Pará!

Imaginem o menino Jesus jogando peteca! Será que ele resistiria a não fazer uns milagrezinhos para ganhar dos outros de seu tope? Ah, não sei, não! Menino gosta de perder, não!

Seria Jesus bom de bola ou perna de pau? Atacante ou defensor? Goleiro ou goleador? Remo ou Paysandu? Tuna ou Pinheirense? E se não jogasse futebol, mas fosse torcedor, imaginem o Jesus na torcida de um desses times? E se o juiz marcasse um pênalti inventado contra a sua equipe? E se seu time perdesse? Seria ele exaltado ou caladinho nesses momentos?

Imaginem Ele em uma das sorveterias de Belém? Que sabor preferiria? E que músicas preferiria? Já pensou no pequeno dançando essas músicas da atualidade?

Jesus nasceu e vive em Belém do Pará com certeza, mas essa boa nova precisa ainda ser escrita!

Não fossem tantas as riquezas que temos e que alegram corações de crianças e adultos, eu até duvidaria! Mas há uma certeza íntima de que ele nasceu por aqui e deve ter andado nuzinho em pelo com nossos índios! A redenção dos pecados estava feita em nossos povos ancestrais desde muito antes que a dos europeus e quem duvidar que leia a carta de Pero Vaz de Caminha! Não havia maldade por aqui e por isso os povos andavam nus e sem tapar aquilo que os europeus chamavam de vergonhas. Eles deviam ter orado mais e acreditado no que o santo menino tinha feito, e se não sabiam, ele já tinha passado por aqui, tomado açaí e ficado. Por isso celebramos sempre, com muita alegria, o seu nascimento e vida em nossa terra querida.

Feliz Natal para todos nós e um ano de 2025 que se aproxima com muitas alegrias!!!

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