Doses delirantes. Resenha. Gutemberg Armando Diniz Guerra
Doses delirantes. Resenha.
Gutemberg Armando Diniz Guerra
LORDELO, José Albertino Carvalho. Doces delírios. Dez doses de humor. São Paulo: Editora Patuá, 2024.
A criatividade de José Albertino Carvalho Lordelo está amplamente demonstrada nas atividades que exerceu, todas com muita intensidade na realização ou no abandono. Não se vê traços de sua formação de engenheiro agrônomo em suas palavras de apresentação nesse livro marcante que ora resenho, embora ele tenha feito graduação e mestrado nessa área, tendo exercido cargos importantes como pesquisador e gestor da Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia, a EPABA e da Companhia de Ação Regional, ambas do Governo do Estado da Bahia, mas deu uma guinada e encerrou sua carreira na área da Educação.
Embora tenha feito inserções pontuais em coletânea na área da literatura, esse seu livro inaugura uma fase de deleite, para alegria e gáudio do público que possa vir a ler seus contos.
As primeiras doses de humor vêm desde o conto inicial em que tem como protagonista um dançarino francês desgarrado de sua trupe e que se entrosa com os capoeiristas e cachaceiros da Ilha de Itaparica e estabelece uma relação curiosa com uma idosa que lhe ama e protege. A narrativa é um atestado da receptividade e forma descontraída de viver dos ilhéus tanto quanto da hilaridade de comportamentos verossímeis de ambas as personagens.
O segundo conto retrata o ambiente promíscuo da travessia na lancha entre o continente e a ilha, em que vendedores ambulantes e passageiros da embarcação dialogam nos embates entre a oferta e tentativa de convencimento dos primeiros com a chacota e dichotes dos segundos em uma animada comédia urbana.
O terceiro conto, de longe o mais elaborado enquanto enredo, descreve a inserção no ambiente insular de uma artista polonesa que se transforma em uma espécie de mecenas das artes dramáticas e de um desfile gay liderado por um modelo homoafetivo, negro e depressivo. Todo o enredo é pleno de expectativas e suspenses. O desfecho da Ópera em que estão envolvidos atores locais e a atriz polaca mistura a ficção com a realidade no próprio conto. O curioso e carregado de humor são os apelidos das personagens, lembrando a forma narrativa de João Ubaldo Ribeiro, ex-morador da mesma Ilha de Itaparica, em suas crônicas e romances ambientados neste mesmo cenário.
Deslocando o cenário para o Vale do Capão, a quarta narrativa diz respeito aos enquadramentos de grupos de militantes ecológicos e espiritualistas m suas variadas matizes e crenças que vão de divindades diversas, vibrações cósmicas e objetos voadores não identificados que têm nesse cenário uma presença muito especial. Não se trata apenas de “bichos grilo” ou fanáticos comuns. A descrição de José Albertino caracterizando cada um deles, embora não exaustiva, analisa e põe em relação de semelhanças ou contradições algumas dessas categorias.
Existem contos que não se referem a um lugar específico e podem ter ocorrido em qualquer cidade de porte semelhante. Excentricidades e normalidades se cruzam nos contos de José Albertino ganhando tons muito bem definidos e levando os leitores a associarem vivencias em cenários semelhantes ou diferentes, cada vez mais próximos de nós! O surrealismo está embutido no quinto conto em que a personagem central é uma governanta que transita entre a competência e um certo grau de loucura e liberdade. O que é a loucura senão a liberdade e fuga das regras e convenções, amarras sociais poderosas a condicionar comportamentos?
A mordacidade e posicionamento crítico é uma das marcas do humor refinado de José Albertino, o que se pode ver no sexto conto sobre o rebuscado linguajar de um certo universo acadêmico, dito das Humanidades, se contrapondo ao cartesianismo assumido por disciplinas que se esforçam por uma postura pretensamente objetiva, estabelecendo uma tensão e incompreensão de ambas as partes. Nenhum dos lados é poupado na verve irônica joséalbertiniana.
As variações de tema mantem uma dinâmica animada para a leitura do conjunto, o que se evidencia por surpresas e obviedades reinterpretadas como no sétimo conto em que a assombração e a dúvida se apresentam de forma inusitada e hilária. Tradição, modernidade, ficção e realidade se misturam no conto exigindo leituras e releituras para se entender se a personagem morreu ou não.
No oitavo conto a linguagem é direta no ambiente popular e debate acalorado entre cachaceiros contumazes, homens e mulheres do povo expressando suas ideias sobre a engenharia do corpo humano e suas conveniências e digressões em palavras de baixo calão e humor escrachado.
A penúltima dose é um primor por trazer uma tensão entre a fé e o mercado, a vida ribeirinha com o empreendedorismo religioso que traz sempre os sarcasmos e as críticas aos que vivem cercados pelas cobranças das crenças e da sociedade moderna.
As religiosidades se explicitam ao longo das narrativas revelando confissões animistas e sincréticas como no nono conto, mas também em outros que o antecedem. A força das raízes africanas é inegável nesta parte da Bahia em que a predominância dos afrodescendentes permanece nítida e muito forte. Mas o humor desse escritor vai além do inédito, misturando textos e personagens sagrados com futebol, visão empresarial, organização coletiva em uma maravilhosa narrativa que fecha com chave de humor refinado esse livro imperdível.
Essa leitura foi feita nas férias e pude partilhar com minha irmã e madrinha muito versada em condução e participação em grupos de leitura, comentando entre nós sobre o estilo albertiniano, lendo juntos algumas linhas e exercitando as trocas de percepções que a literatura sempre nos oferece.
Por muitas razões de proximidade com o autor, com o cenário e com a cultura baiana não tenho nenhuma dúvida de que será uma prenda preciosa o desfrute desse conjunto de oferendas itaparicanas et orbe! Quem não ler estará perdendo muito de conhecer os labirintos da mente imersa na comunidade da maior ilha da Bahia de Todos os Santos, mas também de aspectos do cotidiano no recôncavo baiano.
Olá professor.
ResponderExcluirTem o livro em PDF? Ou só físico?
Abraços e feliz 2025!