Eitcha vida boa da ...! --- Gutemberg Armando Diniz Guerra
Eitcha vida boa da ...!
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Êta, vida boa da ...! Já pensou trabalhar num lugar desse?
Surpreendido pela locução pornográfica pronunciada em alto e bom som, olhei em direção de onde vinha a voz feminina, justamente do meu lado esquerdo, um pouco atrás, me ultrapassando... Era um casal jovem caminhando no Porto em direção ao Farol da Barra. Ela com uma mochila minúscula nas costas, bermuda, blusa pequena cobrindo um top de biquíni. Ele com uma bermuda amarela e uma camiseta de marca famosa. Andavam de mãos dadas e me pareciam deslumbrados com a manhã ensolarada e céu azul desse espaço mágico, ícone do turismo em Salvador. Continuei a caminhada sorrindo interiormente e pensando comigo mesmo que já morei nessa cidade e fui correr mundo, abandonando esse reconhecido e proclamado paraíso para pagar sabe-se lá que penas que eu devia sabe-se lá a quem e em que encarnações.
Esse não é o único lugar bonito dessa terra e me veio logo à mente uma frase do Padre Jerônimo, pároco de minha aldeia da Ribeira, na Cidade Baixa, onde cresci da infância à maturidade. Em um jubileu que não me lembro mais do que, ele pregava em cima de um palanque armado ao lado da Igreja da Penha, de frente para a Baía de Todos os Santos e com uma visão privilegiada da imagem belíssima que vai beirando a margem até a magnífica colina do Bonfim. Diante da deslumbrante paisagem, talvez de improviso, ele exclamou empolgado: “_O povo baiano é acostumado com a beleza!“ Eu deveria ter os meus 17 anos e essa frase ecoa em meu espírito sempre que me deparo com paisagens fantásticas da cidade onde nasci e me criei até debandar para outras plagas!
Mais do que o descrito acima, na caminhada matinal feita no último dia do ano, entre o Porto e o Farol da Barra, fui observando o casario com fachadas originais ainda preservadas, outras desfiguradas, transformadas em casas comerciais, bares, restaurantes, sorveterias, lanchonetes, hospitais, hotéis. Havia pessoas fazendo atividades físicas nas calçadas e nas praias, vendedores ainda arrumando seus tabuleiros, cadeiras e sombrinhas para ganhar seus trocados do dia que iniciava. Banhistas, idosos cumprindo a recomendação médica matinal e uma ou outra criança acompanhada dos pais davam um tom de província de lazer ao lugar.
Corpos expostos sem grandes coberturas nem pudores é o normal em beira de praia! Lembrei de uma americana em Nova Orleans me dizendo: “Nice bodies!” Referia-se aos cidadãos litorâneos de nosso país cuja referência para ela era o Rio de Janeiro. Pensei cá com meus botões: todo corpo é bonito quando não tem vergonha de se mostrar!
Pranchas de surf são usadas para serenos navegadores, ajoelhados ou em pé, darem voltas ao longo da praia do Porto onde Tomé de Souza teria desembarcado em 1549. Há banhistas que mergulham furando as ondas, outros desfrutam da água salgada, fria e cristalina da maré que enche vagarosamente e vem lamber os pés dos que estejam lagarteando ao sol ou sob o abrigo de sombrinhas alugadas. Uma bolha plástica transparente era oferecida aos que pretendessem viver a experiência de estar ao mar naquela vitrine redonda e ver o fundo do mar sem mergulhar.
Moradores de rua, catadores de latinhas de alumínio e varredores davam o tom da desigualdade social herdada de tempos de escravidão ainda presentes em nosso cotidiano dito republicano. Um passado presente! Lavadores das calçadas sapecadas de fezes de animais de estimação e um cheiro forte de urina em alguns pontos específicos como no canto em que se encontra o marco do desembarque do primeiro governador geral e nas proximidades dos fortes de Santa Maria e do Farol da Barra servem para nos lembrar que, mesmo no paraíso, há sujeira e marcas da humanidade decaída, fruto de um ou dois pecados originalíssimos para os religiosos, o primeiro, e para os boêmios, o segundo: o da preguiça e o da falta de mictórios públicos.
O Edifício Oceania inaugurado em 1943 evoca a presença dos aliados na segunda guerra mundial. Deve ter sido muito bom ter sido soldado americano em conflito internacional morando naquela maravilha! Morte aos outros! Vida, e que vida, aos aliados! Em frente ao prédio yankee uma estrutura moderna indica que a terra vai tremer a qualquer momento ao som estrondoso das bandas musicais que viriam animar o fim de um ano e o início de outro. Um homem negro de peito nu, calção escuro, sentado e encostado em um canto da esquina da Avenida Beira Mar, sob a marquise do mesmo Edifício Oceania, canta muito afinado uma música alegre. Seu vozeirão se espalha na avenida enchendo a manhã de surpresa e espanto. Uma verdadeira ópera ao ar livre! A impressão é de que todos desfrutam da felicidade que esse canto de mundo oferece.
Nos bares há boêmios amanhecidos bebendo cerveja, emendando a noite com o dia. Atletas correm ou marcham apressados para manter a forma e disposição para romper a cortina do ano novo e deixar cair a do velho. Turistas fazem auto fotografias, selfies, alongando os braços, fazendo poses para si mesmos e para sabe-se lá quem eles queiram enviar, aproveitando a paisagem, ora enquadrando o Farol de Santo Antônio da Barra, ora o Forte de Santa Maria, ora a fortaleza de São Diogo, ora o mar, ora as fachadas de edifícios e casas.
Humores e rumores da manhã revelam que o dia será longo e animado. Nascer e por do sol ali são reverenciados positiva e negativamente, e a vida segue, como em qualquer lugar do mundo, com trabalho para uns e preguiça para outros!
Tudo o descrito acima é apenas o lado natureza deslumbrante dessa terra historicamente bela. Tem o lado da civilização portuguesa e europeia que se implantou a partir de 1500 e que se espraia pelo centro histórico, com nomes e lembranças nem sempre tão agradáveis, embora recuperadas como se fosse possível esquecer tanta crueldade. Os nativos estão reduzidos a uma estátua no Campo Grande. Casarões dos dominadores reconvertidos se exibem entre o Palacete do Tira Chapéu e a Igreja e Forte de Santo Antônio Além do Carmo. No atual Mercado Modelo, que já abrigou a Alfândega, se mostram os subterrâneos de um tempo em que óleo de baleia era cimento. Na Casa das Histórias se contam fatos exibidos em como o território dos autóctones foi apropriado ao Velho Mundo.
Na Cidade da Música se destrincha o que se canta em cada um dos 44 bairros da cidade, cada composição em um tom específico, em coreografias criativas, ricas e melancolicamente alegres.
Subindo gratuitamente o antigo Guindaste dos Padres, hoje Plano Inclinado Gonçalves, se chega ao Terreiro de Jesus, Praça da Sé demolida, Cruz Caída, Igreja da Misericórdia, Câmara Municipal, Palácio Tomé de Souza, Sorveteria A Cubana, Rua do Tira Chapéu, Ladeira do Pau da Bandeira, Ladeira e Viaduto da Sé, Catedral de Pedra, Colégio dos Padres, antiga Faculdade de Medicina, Igrejas de São Domingos, São Pedro dos Clérigos, São Francisco de Assis das ordens primeira e terceira.
Clarindo Silva continua reinando na Cantina da Lua e nos abraça saudoso com seu (e)terno branco! Descendo para o Pelourinho vejo ainda almas penadas de escravos açoitados em frente à Casa de Jorge Amado e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, cenário do casamento de Dona Flor e seus dois maridos. Rua e Ladeira do Taboão dividem os morros e lá vamos nós para a Igreja de Nosso Senhor dos Passos, cenário do Pagador de Promessas de Glauber Rocha, Conventos das ordens primeira e terceira do Carmo, Plano Inclinado e Cruz do Pilar, Igreja do Boqueirão. Pousadas, hotéis e restaurantes na encosta deixam que se veja a Bahia de Todos os Santos aos pés de quem pode contemplá-la daquelas varandas privilegiadas.
As pedras cabeça-de-negro onde piso me equilibrando me sussurram sei lá que dores, lembranças e dissabores. Uma mulher desesperada me chama, dramaticamente, de uma janela de uma casa antiga e pede, pelo amor de Deus, que lhe compre uma garrafa de água mineral para que ela possa angariar um trocado para cuidar de sua mãe cancerosa e acamada! Vejo-a sumir com meus 5 reais casa adentro. Belisco-me pensando se estou vivo! Logo ali, a poucos passos, flanelinhas disputam uma borra de crack bem na minha frente, desavergonhadamente. Agarram-se simulando cópula sodomítica, riem e se divertem com meu ar de expectador surpreso! Belisco-me de novo! Céus e inferno se me apresentam como uma espécie de comédia de Dante Alighieri. A mulher me traz a água mineral e eu sigo no rumo da Praça de Santo Antônio Além do Carmo, onde meus pais se casaram. Tento chamar um taxi pelo telefone, mas meus dados móveis esgotados não permitem. Um veículo de aluguel passa em minha frente e eu levanto a mão. Ele vê, me pergunta para onde vou, aceita me levar para casa e eu dou graças a Deus e aos erês que me abriram as portas daquela viatura. Ele desce a ladeira da Água Brusca e me permite ver o Mercado de Peixe, a Igreja da Santíssima Trindade, a Feira de Água de Meninos em Frente à Igreja de São Joaquim, passa em frente ao antigo e moderno prédio da Petrobrás, Moinho da Bahia, os dez armazéns da Companhia Docas que agora já não somam tantos os que meu pai contava – Hoje caminhei do décimo ao primeiro armazém! Dizia ele! Praia da Preguiça também era onde o menino Armando, meu pai, tomava banho de água salgada do mar.
Vou deixando minha retina gravar as imagens da Avenida Contorno, Marina onde eram os Armazéns União em que nosso vizinho, seu Deco, trabalhava, depois virado Unimar. Lá em baixo e pouco mais à frente é o Solar do Unhão com sua capelinha barroca maculada por um crime passional, e onde se pode ver um dos mais lindos pores de sol dessa plaga. Logo depois ficamos pequeninos sob o imponente prédio construído onde era o quintal do Palácio arquiepiscopal, mas hoje é conhecido porque ali Ivete Sangalo tem sua morada. Catarina Paraguaçu me acena da Igreja de Nossa Senhora das Graças e volto para a casa de minha irmã para respirar vendo, por uma fresta de arranha céus, o Cristo no seu morro verdinho, em frente ao do Gato. Lá, sob o braço estendido do Salvador, uma multidão se senta para olhar o mar e as praias se iluminarem quando o sol deita para descansar na linha do horizonte.
Opaí, ó! Tudo vira objeto de contemplação e vida nesse teatro soteropolitano! Viva a Bahia! Feliz ano novo! Até outra vez, minha terra profana e santa!
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