"Entre Touros e Anjos" - poemas de Mateus Saraiva

 




Algum poema para Roge Weslen

 

eu deveria ter sido o pequeno habitante das ruínas

Kafka

 

Vamos ao norte amar as coisas divinamente rudes

Roberto Piva

 

 

O poeta dorme de bruços.
Seu sono cava a noite tísica.
Os cavalos ainda o perseguem
pelas planícies, pelas ruas de piçarra
de municípios perdidos. Rude é
nosso rosto. Vossas pálpebras
cansadas, vossas estrias pelo dorso.
Ainda nos esperam as promessas
de outrora. A palavra é um engodo
e fumamos camel blues. Sentados
em alguma calçada de uma belém
em ruínas, escrevemos algo que se
parece com a alegria. Turpis et peri
culosa. Escrevemos em um ato de
amor, e recordamos nossos mortos.
A cidade é uma língua morta,
com suas utopias e perdas. Digo,
foi nesse dia que talvez compreendemos
Jorge de Lima.

 

 

 


Rinha de galo

 

As cristas, auréolas de Deus
encostam seus crânios rubros,
e dançam essa luta de morte.
Meu pai vê singelo espumas
de jejuns, anelos e sangue: o
galo magro entre garras cínicas.
Salta na carnação impura do outro
galo mura isto é bankiva, nubente
que ama o secreto anseio da bruma,
brutalidade envolta em flamas e fíbulas.
Não há festa sem dança.
É uma escatologia do segredo
essa luta, esse círculo de esconjuros
e avulsas penas em seus cabelos.
Meu pai santifica o galo
agora, diante do exílio,
dos anzóis e dos retratos
dos dentes de leite emoldurados
nas gengivas de sorriso esquife.
Esses olhos são anzóis
pendurados no esqueleto
que voa e finca as unhas
nas veias flácidas de um espelho.
Filho posto à guerra, heras
sorvem o resto de silêncio,
das carcaças de carne e cal.
Se tu o amaste, pai, não sei,
agora tenho os meus folguedos
próprios, e os círculos são tempos
distantes. Contudo, a crista
dobra o gesto nu das estátuas,
galos em estado de cruas ternuras,
indecidíveis, unidos, dançam.
Esses manequins sem sexo
esses modos de ferir-se, de calar-se.

 

 

Mangais

 

 

Nos mangais, os salmos
recitados de boca elidem
a fome e o sono.
Avisto uma cidade em chamas
e os caranguejos marcham
ao fundo de sal e espanto.
Me vejo menino, com argila
pelos cílios, que pesam.
Vejo a safra de limões
e promessas ignotas.
As rugas tomam meu rosto,
e sei, das ruínas e das azaléias
que afogam as lágrimas
de setembro.
Nos mangais, há esse
rumor noturno,
um choro que não entendo.
Há pássaros que agouram
meus dias metálicos.
Há essa luz ambígua
que despenca das brechas
de árvores puídas pelo vento.
Os remansos ferem o sol
com suas grinaldas de cal.
Somos todos tapuios beirando
as margens da ilha, entre
chuvas violentas e dívidas de jogo.
É a plumagem da escritura que
resta das bocas,
exílio de nuvens
territórios de sombras
e pupilas de tabatinga.
Esse silêncio ungido das horas
nuas do homem.
 

 

 

 

Santa Isabel, km 5
 

 

Chove no ramal
e a lama suja meus
sapatos magnéticos.
Meu pai não veio.
O ônibus escolar
some na curva;
junto tucumãs
e espero, de pé
na solidão da
estrada, pântano
que sangra. Vejo
pássaros, asas,
latidos moucos;
lembro de Ana que
me olhava com sua
melancolia anfíbia.
Papai tem 19 anos.
Mamãe 18.
Ainda espero
a insônia e seus
silêncios ocos
suas prestidigitações
aliciando-me os nervos.
Tenho olhos de barro
e a vista do céu é o debalde
prenhe de um sol cego.
Espero que venha
antes que os sinos
convalescentes
arranhem o vento.
E esta seja a hora
em que é perigoso
viver. Lembro do
mesmo vento em
minhas mãos fora
da janela: o ar coagulado
em meus dedos feridos
de anzóis e meninices.
Espero ainda, diante
das obnubiladas
memórias de anjos
tisnados de angústia.
Espero, tu, pai, ou
Godot, ou esse rapaz
de bicicleta que
me espia de longe.
E tu vens com suas
sandálias singradas
por pregos. E eu
ainda sinto o vento
entre os dedos e a
saliva do orvalho
em comunhão.

 

 


 

Anti-ode urbana I

 

Não vim para cantar.
Alheio-me de delicadezas e cornucópias.
Estamos velhos, eu e a cidade,
enrugados e flácidos,
nossa memória é um
abandono de purezas.
Aqui amei em fugas
e verdades cínicas.
Ali sofri a solitude
dos finais abalroados.
Fumo com seus séquitos.
Enumero suas crises, suas
unhas enroladas na carne
dos mortos. Somos os
operários das ruínas.
Andamos debulhando as fugas,
corrompendo sintagmas, pedras,
confundindo cidadela e urbe.
Fomos nós que corroemos tuas
ruas. Fomos nós que plantamos
samambaias nas calçadas. Fomos
nós que instituímos os erros.
Um sol. A lâmpada das casas
entre córregos, suas veias, suas
esquadrias, suas luzes tristes.
O chão é um metal pátino.
E tudo que nos resta é um tipo
de violência manchada de enigmas.
Olho pela fresta das tábuas
as sombras que passam soturnas
furtando-me os arrepios.
Lembro dos cabelos
de Marinete no sofá, enrolados
aos livros. Lembro de Josué
e os seus planos agônicos.
Lembro das vergonhas que tu
escondes. Todos vivemos em
teus escombros. Todos caminhamos
em teu ventre. Todos (os meninos
as prostitutas, os pastores, os
vândalos, os crentes, os sem-teto,
os revolucionários, os poetas, os
vagabundos, os patrões, os cavalos,
os bois, os cães, os pombos mutilados,
os morcegos nas vigas da ponte, os
peixes nos canais, sujos de mitos)
dormimos com fome. Todos ficamos
em silêncio. Nossas bocas sem
rumo nos incêndios.

 

 

Carta à mãe

 

Perco a infância calcinada, vejo
Rex que morre magro no quintal,
o mesmo em que fumo escondido
o mesmo em que talho facas cegas
o mesmo em que reúno carícias baças.
Meu corpo tem nódoas de cajus
e falta de ferro. O mundo está
em mim como Deus está em ti.
O tempo é uma abertura, e o silêncio
abriga-nos. Os pastos e as cidades
continuam sendo cicatrizes na terra.
Nossos antepassados amaram a
torrente, a sombra.
Nossos antepassados amaram os
jardins e os encantamentos.
Perfaziam um círculo de nelumbos
e moringas.
As oblatas eram estas águas no
sumidouro.
Nossos antepassados faziam rinha de
galos, plantavam roças, brigavam de faca.
E devoram ainda o que somos.
No dia em que fui embora, olhou-me
os dentes, as costelas, as lágrimas.
Eu já tinha elegias ruins nos bolsos
e fábulas extraídas da pedra.
Tu tinhas medo do que fosse
morte, do que me atingisse o
âmago. Do que me ferisse
as pálpebras. Das noites violentas,
das tristezas antigas, disso que
rói a paisagem.
Tinhas medo do poeta, dos poetas
que ficaram loucos de tanto ler
de tanto encravar na carne o exílio
que andaram devendo agiotas
que morriam solitários em casebres
que vendiam drogas nas esquinas
que eram torpes e lunares.
Peço-te que durma em paz.
Aqui, no Norte, não há perdão.
Não imputo isso a ninguém, não
espero isso de ninguém. Planto
bananeiras, vejo os navios, manchas
na água. Cadência e sono levam-me
aos galopes para dentro do silêncio,
do qual um dia nasceremos.

 

 

Mateus Saraiva é poeta, nasceu em Vigia de Nazaré (Pará-Brasil). O autor prepara ainda o seu primeiro livro de poemas, Entre Touros e Anjos.


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