A canção de Rute - Gabriel Marinho
“Há tantas sombras à noite, já
notou? Mesmo com uma luz acesa, há tantas sombras. A gente pensa que as sombras
longas poderiam ser qualquer coisa.
Qualquer coisa mesmo.”
– Stephen King
1
Valsinha do Marajó. Ecos-acordes. As mãos varicosas do velho pianista
evocavam notas que espalhavam-se pela escuridão do quarto de casal – algumas,
insurgentes, não contentando-se com as com restrições da alcova, pulavam as
janelas e tomavam o rumo da rua-madrugada. Outras, por outro lado, passeavam
pelos detalhes: o bigode grisalho do pianista; uma coleção de centenas de vinis
entre as prateleiras da estante, ao lado da porta do cômodo e, sobre o móvel,
uma vitrola e o prêmio em formato de gramofone (gravação do ano pela canção
“caligrafia”) lhes entregue pelo grammy latino, uns dois ou três anos antes; a
mesa de cabeceira atulhada de cosméticos e caixas de medicamentos; o reflexo
turvo do velho no vidro sujo do espelho de mesa redondo e um antigo retrato de
casamento afundado em lençóis brancos.
Valsinha do Marajó. Ecos-acordes. Ajeitou, com a ponta do dedo
indicador, o par de óculos sobre seu nariz aquilino. Por detrás das lentes
grossas, olhos castanho-esverdeados – olhos que, de súbito, arregalaram-se. As
mãos saltaram das teclas do piano como felinos arredios. O quarto emudeceu.
Silêncio. Ecos-hiatos. O tórax do idoso inflava-se, desritmado. Ao
redor, as paredes esmagavam-no com seus olhos ausentes. Possuíam elas, além de
visão libitina, ouvidos para escutar o dissílvo murmurado pelos lábios do
velho?
– Rute?
Presença. Atrás de seus ombros, miasma – vinho-adocicado. Uma imóvel
silhueta esquálida-nua o observava, escondida por detrás das sombras nas
margens do cômodo.
O ruído retorcido de sua respiração dispersava-se pelo aposento como o
grasnar de uma ave moribunda.
2
Rute Pinheiro, ícone da música paraense, morre aos 72 anos
Faleceu, no início da manhã de hoje
(11 de janeiro), em Belém/PA, a cantora e compositora Rute Pinheiro, integrante
da dupla “Os Pinheiros” com seu marido (agora viúvo) e também músico Josué
Pinheiro. A cantora já vinha batalhando, há pelo menos dois anos, contra um
câncer de [...]
Josué não era um homem dado às lágrimas; de natureza sensível,
embrutecia a si mesmo. Hospital. Velório. Sepultamento. Discurso. Morrer era
burocrático. Lembrou-se da gravata vermelha, das anedotas nostálgicas e de
agradecer condolências – esqueceu-se do choro. Estremeceu ao ouvir o barulho
esfarelado da terra sendo despejada sobre o verniz do caixão – tich –, mas só. Davam-lhe a permissão
para desabar, mas subestimavam a força que exigia-lhe o desvario.
Uma sombra esguia projetava-se na soleira da porta. O dia descoloria
seus tons vespertinos. Girou a maçaneta e entrou no quarto. Josué. As roupas
pareciam pesar em seus ombros alquebrados. Despiu-se. Caminhou até a cama de
casal e sentou-se ao lado da mesa de cabeceira. O piano fechado, ao fundo,
prostrava-se como um decorativo taciturno. Cortinas farfalhavam. Alguma
cacofonia tênue vazava pelas janelas abertas – de resto, quietude.
O velho perscrutou o ambiente à sua volta, observando como a rotina dos
últimos dois anos exibia-se nas minúcias. Eram visagens. Pousou os olhos num
desbotado retrato de casamento na mesa ao lado. Inclinou-se, afastou algumas
caixas de remédios e apanhou a moldura. Fitou-a.
tich
Agarravam-se num beijo manso. Rostos desfocados sorriam ao redor.
Vozerio. Calor. Ela acariciava-lhe a barba. Cabelos curtos, estilo Audrey
Hepburn. Suor; odor salino que misturava-se ao vinho-adocicado de seu perfume.
tich
Lágrimas gêmeas desceram, uma após a outra, pelas fendas de seu rosto
rijo. Enxugou-as. Mais lágrimas vieram; banhavam-lhe a pele – em seu peito
latejava um vazio. Abraçou a moldura, sentindo a textura lisa do vidro. Deitou
na cama. O sono não demorou a vir. Deixou-se deslizar.
Vozerio
Calor
Suor
Deságue
2.1
Clarão. Trovejar. Algo gelado molhou sua testa, descendo e
ramificando-se pelas têmporas. Chuva. Josué abriu os olhos, sobressaltado. As
janelas, escancaradas, chocavam-se contra as guarnições num martelar ininterrupto
– a tempestade noturna agitava as cortinas e inundava o assoalho. Saltou da
cama. Frio. Óculos embaçados. Pressão na lombar. Arrastou os pés pelo chão de
taco, sentindo água entre os dedos e tomando cuidado para não escorregar.
Alcançou as janelas. Lufadas golpeavam-lhe o rosto. Frio. Óculos embaçados.
Pressão na lombar. Conseguiu fechá-las, com algum esforço.
Detrás dos borrões, observou o lacrimejar cor de anil serpenteando pelos
vidros; luar nas feições, esteira de luz que banhava o negrume da alcova,
rasgando-lhe em duas metades. Ouviu, de repente, o zumbido de uma mosca voando
pelo quarto. Virou-se ofegante e sentiu um cheiro doce. Miasma. Limpou os
óculos. Seus olhos seguiram o inseto, acompanhando-o até o canto do aposento,
onde desapareceu em meio às sombras. Silêncio.
Clarão. Trovejar. No reflexo das lentes, a mulher. Rute. Suas vestes
eram as moscas e os vermes.
O velho, ao vê-la, deu um passo brusco para trás. Quase escorregou.
Olhos pétreos, cheios d’água. Pele pálida. Coração acelerado. Quis chamá-la
pelo nome; escapava-lhe a voz. Nos recônditos de sua memória tocava uma música.
Só
mesmo o tempo pode revelar
O
lado oculto das paixões
O
que se foi e o que não passará
Inesquecíveis
sensações
Respirou fundo. Engoliu em seco. O miasma continuava a emanar da treva,
além do zumbido contínuo das moscas. Embrulhava o estômago, mas trazia-lhe
algum bem-estar contraditório – calor, suor e perfume. Olhou o piano; semblante
inseguro. Respingos de lua iluminavam o instrumento. Aproximou-se a passos
lentos, sentou no banco – suas costas latejavam – e abriu a tampa de madeira.
Poeira nos dedos. Atrás de si, a presença; murmúrios.
Lume-vultos bruxuleavam sobre o preto e branco das teclas. Acima delas,
repousavam seus dedos magros. Corrigiu a postura. Antebraços e pulsos
nivelados. Fundamentos. Hábitos. Suas mãos, no entanto, tremiam. Respiração
pesada. Pensamentos turvos. Fechou os olhos. Lágrimas desceram pelas maçãs de
seu rosto.
– Eu não consigo – sussurrou.
Clarão. Trovejar. Quarto vazio. Na escuridão, além do barulho da chuva,
ouvia-se somente o choro de um homem velho.
3
Manhã. Claridade. Branquitude de tons leitosos. Os olhos de Rute ardiam.
Garganta seca. Deitada na cama, ela alternava olhares. Teto. Cortinas. Teto.
Cortinas; tecido translúcido, carregado com carinho pelo vento matutino. Ouvia,
com atenção, os sons exteriores. Rodinhas de skate descendo a rua. Risadas.
Matraquear adolescente.
Vozes juvenis destacavam-se num condomínio de aposentados – vivazes,
distantes; anacronismos.
Josué entrou no quarto; copo d’água numa das mãos e um sorriso desenhado
nos lábios, o qual ela retribuiu. Bebeu o copo até a metade e devolveu-lhe ao
marido.
– Não quer mais um pouco?
Ela negou com a cabeça. Tateava o pescoço com as pontas dos dedos;
garganta pulsava.
Josué pousou o copo ao lado, sobre a mesa de cabeceira, e sentou na
cama. Acariciou, com delicadeza, a fina penugem que agora cobria a cabeça da
esposa. Desceu os dedos, afagando a pele frágil de seu rosto; pouquíssimas
rugas.
– Como está se sentindo hoje?
Rute beijou a mão do marido. Cheiro de hidratante.
– Velha – respondeu; a voz áspera.
Sorriu – nem tanto.
Miravam-se. Ela reparou no modo como os traços de velhice
evidenciavam-se no rosto do esposo; ainda o mesmo homem, todavia. Mas como ele,
afinal, a enxergava? Temia ser um objeto de pena. Sentia-se feia, sentia-se
minúscula, sentia-se, sobretudo, uma mulher triste.
– Quer comer?
Negou, outra vez, com a cabeça – esses remédios tiram meu apetite.
Suspirou – tudo bem – disse em voz baixa, voltando sua atenção para os
sons da rua. Fugazes, as vozes saracoteavam pelo cômodo, trazendo-lhes um
frescor melancólico.
Escutaram, em silêncio.
Sentiu o toque de Rute em seu queixo, conduzindo seus olhos aos dela.
Tanto diziam-lhe aqueles olhos.
Ela sorriu – toca uma música pra mim?
O semblante do marido exibiu algum brilho. Ele acariciou, pela segunda
vez, o rosto da mulher, beijou-a e caminhou até o piano.
Sentou-se – qual seu pedido?
A palidez de Rute confluía-se com o tom alvo dos lençóis sinuosos que,
derramando-se sobre ela, delineavam a geografia esquálida de seus contornos.
– Eternamente.
Assentiu. Corrigiu a postura. Antebraços e pulsos nivelados.
Fundamentos. Hábitos. Música. Notas isoladas no início, depois a voz; tenor
despojado.
Ouvia-o, em silêncio.
Fechou os olhos. Múltiplos sabores de lágrimas afluíam até seus lábios.
A velha musicista deságua; vendo-se incapaz de cerzir a extensão d’uma vida na
distância entre um par de acordes. Restou-lhe um canto rouco.
Canção pluvial; trazia-lhe boas lembranças.
Não conseguiu terminar de cantá-la.
1.1
Uma mosca zumbiu ao redor.
O ar ambiente era denso; arfava-o com dificuldade. Cansaço. Pálpebras
caídas. Não dormia há dias. Madrugadas ao piano, aguardando-a.
Seu coração tornara-se estreito; intumescido por desausências.
Mãos trêmulas, como de costume. Respirou fundo. O eflúvio cadavérico
espalhava-se, gradualmente, pelo cômodo. Náusea. O velho reaproximou os dedos
compridos do instrumento, pousou-os sobre as teclas. Corrigiu a postura.
Antebraços e pulsos nivelados. Mesma história.
Começou a tocar.
As notas espalharam-se, agudo-graves e cadenciadas, dissolvendo a
quietude antecessora às primeiras luzes da alvorada. Fez-se ouvir, em seguida,
a voz quebradiça de um homem velho.
Só
mesmo o tempo pode revelar
O
lado oculto das paixões
O
que se foi e o que não passará
Inesquecíveis
sensações
Saíram do prédio do cartório, na Senador Lemos, um pouco antes do
meio-dia. Foram num monza vermelho; latas de cerveja amassadas chacoalhando
atrás do veículo. Rute, volta e meia, colocava o rosto para fora da janela –
seus cabelos curtos dançavam, carregados pelo vento-mormaço da metrópole.
Estacionaram em frente ao Hotel Márquez. Risadas e passos apressados foram
ouvidos no térreo e no corredor do quinto andar. Suíte número 225. Modesta. Da
varanda, podia-se observar o tráfego contínuo na Almirante Barroso. Som de
chuveiro ligado; ela cantava. Chamou-o. A água descia de seus cabelos,
serpenteava por suas costas nuas e escorria pelas coxas, até alcançar o ralo.
Miravam-se. Convidou-o com os olhos. Josué entrou sob o fluxo d’água; apertou
sua cintura. Deságue.
Que
sempre vão ficar
Pra
nos fazer lembrar
Dos
sonhos, beijos
Tantos
momentos bons
Saíram às pressas. Foram numa ambulância; sirenes vermelho-azuladas
gritando pelas ruas. A cidade, através do par de janelas traseiras do veículo,
aparentava lançar-se na direção oposta. Chamou-o. Suas mãos estavam geladas.
Vai terminar de tocar aquela música pra mim?
Só
mesmo o tempo vai poder provar
A
eternidade das canções
A
nossa música está no ar
Emocionando
os corações
Rute começou a caminhar para fora das sombras; um oceano negro de moscas
ondulava ao seu redor. Seus passos lentos refletiam-se no espelho redondo em
cima da mesa de cabeceira. Alguns insetos andavam sobre o vidro.
Pois
tudo que é amor
Parece
com você
Pense,
lembre
Nunca
vou te esquecer
O corredor daquela casa de shows em Salinas cheirava à maconha e vinho
barato. Grafites espalhavam-se pelas paredes escuras, iluminadas somente pelo
ultravioleta das luzes ao redor. No palco, lá atrás, uma banda de
universitários tocava um cover de Pink Floyd. Com feições que denunciavam
alguma ansiedade, parado ao lado da porta do banheiro feminino, Josué esperava
pela namorada; um Rothmans cuspindo fumaça entre os dedos. Apresentação de
estreia. Rute comprara um vestido. Algumas pessoas transitavam por ali,
lançando-o olhares ébrios enquanto caminhavam em direção ao salão. Brasas
caíam. Ouviu as dobradiças da porta rangerem. Rute. Era um vestido longo,
levemente decotado – cor de sangue. Deu um giro; o tecido moveu-se com leveza à
sua volta. Sorriu. Você gostou?
Vou
ter sempre você comigo
Nosso
amor eu canto e cantarei
Você
é tudo o que eu amei na vida
Nunca
vou te esquecer
O corredor de espera daquele hospital cheirava à limpeza. Algumas placas
de aviso espalhavam-se pelas paredes brancas ao redor, entre elas um PROIBIDO
FUMAR. Ambiente estéril. Josué ajeitou-se no banco. Estalou os dedos das mãos.
Levantou-se, caminhou até o bebedouro e tomou um gole d’água. Sentou-se
novamente. Sua perna esquerda balançava. Silêncio; os passos do médico
fizeram-se ouvir ao dobrarem o corredor. Trocaram olhares apreensivos. O som de
suas respirações ecoava na quietude.
Só
mesmo o tempo pode revelar
O
lado oculto das paixões
O
se foi e o que não passará
Inesquecíveis
sensações
O frêmito dos insetos – que agora começavam a cobrir a pele do velho
numa massa de borrões negros – antepusera-se à melodia do piano. Sentia-se
sufocado; as pernas das moscas arranhando-o por debaixo do pijama. Não parou de
tocar, todavia, nem mesmo quando notou a mão fria de Rute em seu ombro. Vermes
rastejavam na carne decomposta, desenhando trilhas por entre os músculos,
tendões e ossos expostos daquele toque. O cheiro era insuportável, mas
fazia-lhe companhia.
Que
sempre vão ficar
Pra
nos fazer lembrar
Dos
sonhos, beijos
Tantos
momentos bons
As mãos varicosas do velho pianista moviam-se pelas teclas tal qual
aranhas insones. Notas últimas vicejaram na treva – então morreram; estrada de
lamúrias por onde forçou-se a andar de pés descalços, sangrando sobre as
memórias que deixara pelo caminho.
Viu-se só.
O quarto à sua volta agora preenchia-se tão somente pelo silêncio e
calor tênue das primeiras luzes – brilho que espalhava-se em feixes compridos
por cima do assoalho, rasgando o negrume; tremeluzindo sobre o instrumento.
Hesitante, o velho levou uma das mãos até o ombro, desejando tocar nem
que fosse aquela textura repulsiva. Tateou um vazio.
Josué não era um homem dado às lágrimas, mas, naquele início de manhã,
após fechar a tampa de madeira do piano, lembrou-se de chorar mais um pouco –
só mais um pouco.
XII Edição - quilômetros de susto: poéticas do não
Edição de Marcos Samuel Costa
2025
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