A canção de Rute - Gabriel Marinho

 




Mark Rothko (1970)







“Há tantas sombras à noite, já notou? Mesmo com uma luz acesa, há tantas sombras. A gente pensa que as sombras longas poderiam ser qualquer coisa.

Qualquer coisa mesmo.”

    – Stephen King

 

1

 

    Valsinha do Marajó. Ecos-acordes. As mãos varicosas do velho pianista evocavam notas que espalhavam-se pela escuridão do quarto de casal – algumas, insurgentes, não contentando-se com as com restrições da alcova, pulavam as janelas e tomavam o rumo da rua-madrugada. Outras, por outro lado, passeavam pelos detalhes: o bigode grisalho do pianista; uma coleção de centenas de vinis entre as prateleiras da estante, ao lado da porta do cômodo e, sobre o móvel, uma vitrola e o prêmio em formato de gramofone (gravação do ano pela canção “caligrafia”) lhes entregue pelo grammy latino, uns dois ou três anos antes; a mesa de cabeceira atulhada de cosméticos e caixas de medicamentos; o reflexo turvo do velho no vidro sujo do espelho de mesa redondo e um antigo retrato de casamento afundado em lençóis brancos.

    Valsinha do Marajó. Ecos-acordes. Ajeitou, com a ponta do dedo indicador, o par de óculos sobre seu nariz aquilino. Por detrás das lentes grossas, olhos castanho-esverdeados – olhos que, de súbito, arregalaram-se. As mãos saltaram das teclas do piano como felinos arredios. O quarto emudeceu.

    Silêncio. Ecos-hiatos. O tórax do idoso inflava-se, desritmado. Ao redor, as paredes esmagavam-no com seus olhos ausentes. Possuíam elas, além de visão libitina, ouvidos para escutar o dissílvo murmurado pelos lábios do velho?

    – Rute?

    Presença. Atrás de seus ombros, miasma – vinho-adocicado. Uma imóvel silhueta esquálida-nua o observava, escondida por detrás das sombras nas margens do cômodo.

    O ruído retorcido de sua respiração dispersava-se pelo aposento como o grasnar de uma ave moribunda.

 

2

 

Rute Pinheiro, ícone da música paraense, morre aos 72 anos

Faleceu, no início da manhã de hoje (11 de janeiro), em Belém/PA, a cantora e compositora Rute Pinheiro, integrante da dupla “Os Pinheiros” com seu marido (agora viúvo) e também músico Josué Pinheiro. A cantora já vinha batalhando, há pelo menos dois anos, contra um câncer de [...]

   

    Josué não era um homem dado às lágrimas; de natureza sensível, embrutecia a si mesmo. Hospital. Velório. Sepultamento. Discurso. Morrer era burocrático. Lembrou-se da gravata vermelha, das anedotas nostálgicas e de agradecer condolências – esqueceu-se do choro. Estremeceu ao ouvir o barulho esfarelado da terra sendo despejada sobre o verniz do caixão – tich –, mas só. Davam-lhe a permissão para desabar, mas subestimavam a força que exigia-lhe o desvario.

    Uma sombra esguia projetava-se na soleira da porta. O dia descoloria seus tons vespertinos. Girou a maçaneta e entrou no quarto. Josué. As roupas pareciam pesar em seus ombros alquebrados. Despiu-se. Caminhou até a cama de casal e sentou-se ao lado da mesa de cabeceira. O piano fechado, ao fundo, prostrava-se como um decorativo taciturno. Cortinas farfalhavam. Alguma cacofonia tênue vazava pelas janelas abertas – de resto, quietude.

    O velho perscrutou o ambiente à sua volta, observando como a rotina dos últimos dois anos exibia-se nas minúcias. Eram visagens. Pousou os olhos num desbotado retrato de casamento na mesa ao lado. Inclinou-se, afastou algumas caixas de remédios e apanhou a moldura. Fitou-a.

    tich

    Agarravam-se num beijo manso. Rostos desfocados sorriam ao redor. Vozerio. Calor. Ela acariciava-lhe a barba. Cabelos curtos, estilo Audrey Hepburn. Suor; odor salino que misturava-se ao vinho-adocicado de seu perfume.

    tich

    Lágrimas gêmeas desceram, uma após a outra, pelas fendas de seu rosto rijo. Enxugou-as. Mais lágrimas vieram; banhavam-lhe a pele – em seu peito latejava um vazio. Abraçou a moldura, sentindo a textura lisa do vidro. Deitou na cama. O sono não demorou a vir. Deixou-se deslizar.

    Vozerio

                       Calor

    Suor

                       Deságue

 

2.1

 

    Clarão. Trovejar. Algo gelado molhou sua testa, descendo e ramificando-se pelas têmporas. Chuva. Josué abriu os olhos, sobressaltado. As janelas, escancaradas, chocavam-se contra as guarnições num martelar ininterrupto – a tempestade noturna agitava as cortinas e inundava o assoalho. Saltou da cama. Frio. Óculos embaçados. Pressão na lombar. Arrastou os pés pelo chão de taco, sentindo água entre os dedos e tomando cuidado para não escorregar. Alcançou as janelas. Lufadas golpeavam-lhe o rosto. Frio. Óculos embaçados. Pressão na lombar. Conseguiu fechá-las, com algum esforço.

    Detrás dos borrões, observou o lacrimejar cor de anil serpenteando pelos vidros; luar nas feições, esteira de luz que banhava o negrume da alcova, rasgando-lhe em duas metades. Ouviu, de repente, o zumbido de uma mosca voando pelo quarto. Virou-se ofegante e sentiu um cheiro doce. Miasma. Limpou os óculos. Seus olhos seguiram o inseto, acompanhando-o até o canto do aposento, onde desapareceu em meio às sombras. Silêncio.

    Clarão. Trovejar. No reflexo das lentes, a mulher. Rute. Suas vestes eram as moscas e os vermes.

    O velho, ao vê-la, deu um passo brusco para trás. Quase escorregou. Olhos pétreos, cheios d’água. Pele pálida. Coração acelerado. Quis chamá-la pelo nome; escapava-lhe a voz. Nos recônditos de sua memória tocava uma música.

 

Só mesmo o tempo pode revelar

O lado oculto das paixões

O que se foi e o que não passará

Inesquecíveis sensações

 

    Respirou fundo. Engoliu em seco. O miasma continuava a emanar da treva, além do zumbido contínuo das moscas. Embrulhava o estômago, mas trazia-lhe algum bem-estar contraditório – calor, suor e perfume. Olhou o piano; semblante inseguro. Respingos de lua iluminavam o instrumento. Aproximou-se a passos lentos, sentou no banco – suas costas latejavam – e abriu a tampa de madeira. Poeira nos dedos. Atrás de si, a presença; murmúrios.

    Lume-vultos bruxuleavam sobre o preto e branco das teclas. Acima delas, repousavam seus dedos magros. Corrigiu a postura. Antebraços e pulsos nivelados. Fundamentos. Hábitos. Suas mãos, no entanto, tremiam. Respiração pesada. Pensamentos turvos. Fechou os olhos. Lágrimas desceram pelas maçãs de seu rosto.

    – Eu não consigo – sussurrou.

    Clarão. Trovejar. Quarto vazio. Na escuridão, além do barulho da chuva, ouvia-se somente o choro de um homem velho.

 

3

 

    Manhã. Claridade. Branquitude de tons leitosos. Os olhos de Rute ardiam. Garganta seca. Deitada na cama, ela alternava olhares. Teto. Cortinas. Teto. Cortinas; tecido translúcido, carregado com carinho pelo vento matutino. Ouvia, com atenção, os sons exteriores. Rodinhas de skate descendo a rua. Risadas. Matraquear adolescente.

    Vozes juvenis destacavam-se num condomínio de aposentados – vivazes, distantes; anacronismos.

    Josué entrou no quarto; copo d’água numa das mãos e um sorriso desenhado nos lábios, o qual ela retribuiu. Bebeu o copo até a metade e devolveu-lhe ao marido.

    – Não quer mais um pouco?

    Ela negou com a cabeça. Tateava o pescoço com as pontas dos dedos; garganta pulsava.

    Josué pousou o copo ao lado, sobre a mesa de cabeceira, e sentou na cama. Acariciou, com delicadeza, a fina penugem que agora cobria a cabeça da esposa. Desceu os dedos, afagando a pele frágil de seu rosto; pouquíssimas rugas.

    – Como está se sentindo hoje?

    Rute beijou a mão do marido. Cheiro de hidratante.

    – Velha – respondeu; a voz áspera.

    Sorriu – nem tanto.

    Miravam-se. Ela reparou no modo como os traços de velhice evidenciavam-se no rosto do esposo; ainda o mesmo homem, todavia. Mas como ele, afinal, a enxergava? Temia ser um objeto de pena. Sentia-se feia, sentia-se minúscula, sentia-se, sobretudo, uma mulher triste.

    – Quer comer?

    Negou, outra vez, com a cabeça – esses remédios tiram meu apetite.

    Suspirou – tudo bem – disse em voz baixa, voltando sua atenção para os sons da rua. Fugazes, as vozes saracoteavam pelo cômodo, trazendo-lhes um frescor melancólico.

    Escutaram, em silêncio.

    Sentiu o toque de Rute em seu queixo, conduzindo seus olhos aos dela. Tanto diziam-lhe aqueles olhos.

    Ela sorriu – toca uma música pra mim?

    O semblante do marido exibiu algum brilho. Ele acariciou, pela segunda vez, o rosto da mulher, beijou-a e caminhou até o piano.

    Sentou-se – qual seu pedido?

    A palidez de Rute confluía-se com o tom alvo dos lençóis sinuosos que, derramando-se sobre ela, delineavam a geografia esquálida de seus contornos.

    – Eternamente.

    Assentiu. Corrigiu a postura. Antebraços e pulsos nivelados. Fundamentos. Hábitos. Música. Notas isoladas no início, depois a voz; tenor despojado.

    Ouvia-o, em silêncio.

    Fechou os olhos. Múltiplos sabores de lágrimas afluíam até seus lábios. A velha musicista deságua; vendo-se incapaz de cerzir a extensão d’uma vida na distância entre um par de acordes. Restou-lhe um canto rouco.

    Canção pluvial; trazia-lhe boas lembranças.

    Não conseguiu terminar de cantá-la.

 

1.1

 

    Uma mosca zumbiu ao redor.

    O ar ambiente era denso; arfava-o com dificuldade. Cansaço. Pálpebras caídas. Não dormia há dias. Madrugadas ao piano, aguardando-a.

    Seu coração tornara-se estreito; intumescido por desausências.

    Mãos trêmulas, como de costume. Respirou fundo. O eflúvio cadavérico espalhava-se, gradualmente, pelo cômodo. Náusea. O velho reaproximou os dedos compridos do instrumento, pousou-os sobre as teclas. Corrigiu a postura. Antebraços e pulsos nivelados. Mesma história.

    Começou a tocar.

    As notas espalharam-se, agudo-graves e cadenciadas, dissolvendo a quietude antecessora às primeiras luzes da alvorada. Fez-se ouvir, em seguida, a voz quebradiça de um homem velho.

 

Só mesmo o tempo pode revelar

O lado oculto das paixões

O que se foi e o que não passará

Inesquecíveis sensações

 

    Saíram do prédio do cartório, na Senador Lemos, um pouco antes do meio-dia. Foram num monza vermelho; latas de cerveja amassadas chacoalhando atrás do veículo. Rute, volta e meia, colocava o rosto para fora da janela – seus cabelos curtos dançavam, carregados pelo vento-mormaço da metrópole. Estacionaram em frente ao Hotel Márquez. Risadas e passos apressados foram ouvidos no térreo e no corredor do quinto andar. Suíte número 225. Modesta. Da varanda, podia-se observar o tráfego contínuo na Almirante Barroso. Som de chuveiro ligado; ela cantava. Chamou-o. A água descia de seus cabelos, serpenteava por suas costas nuas e escorria pelas coxas, até alcançar o ralo. Miravam-se. Convidou-o com os olhos. Josué entrou sob o fluxo d’água; apertou sua cintura. Deságue.

 

Que sempre vão ficar

Pra nos fazer lembrar

Dos sonhos, beijos

Tantos momentos bons

 

    Saíram às pressas. Foram numa ambulância; sirenes vermelho-azuladas gritando pelas ruas. A cidade, através do par de janelas traseiras do veículo, aparentava lançar-se na direção oposta. Chamou-o. Suas mãos estavam geladas. Vai terminar de tocar aquela música pra mim?

 

Só mesmo o tempo vai poder provar

A eternidade das canções

A nossa música está no ar

Emocionando os corações

 

    Rute começou a caminhar para fora das sombras; um oceano negro de moscas ondulava ao seu redor. Seus passos lentos refletiam-se no espelho redondo em cima da mesa de cabeceira. Alguns insetos andavam sobre o vidro.

 

Pois tudo que é amor

Parece com você

Pense, lembre

Nunca vou te esquecer

 

    O corredor daquela casa de shows em Salinas cheirava à maconha e vinho barato. Grafites espalhavam-se pelas paredes escuras, iluminadas somente pelo ultravioleta das luzes ao redor. No palco, lá atrás, uma banda de universitários tocava um cover de Pink Floyd. Com feições que denunciavam alguma ansiedade, parado ao lado da porta do banheiro feminino, Josué esperava pela namorada; um Rothmans cuspindo fumaça entre os dedos. Apresentação de estreia. Rute comprara um vestido. Algumas pessoas transitavam por ali, lançando-o olhares ébrios enquanto caminhavam em direção ao salão. Brasas caíam. Ouviu as dobradiças da porta rangerem. Rute. Era um vestido longo, levemente decotado – cor de sangue. Deu um giro; o tecido moveu-se com leveza à sua volta. Sorriu. Você gostou?

 

Vou ter sempre você comigo

Nosso amor eu canto e cantarei

Você é tudo o que eu amei na vida

Nunca vou te esquecer

 

    O corredor de espera daquele hospital cheirava à limpeza. Algumas placas de aviso espalhavam-se pelas paredes brancas ao redor, entre elas um PROIBIDO FUMAR. Ambiente estéril. Josué ajeitou-se no banco. Estalou os dedos das mãos. Levantou-se, caminhou até o bebedouro e tomou um gole d’água. Sentou-se novamente. Sua perna esquerda balançava. Silêncio; os passos do médico fizeram-se ouvir ao dobrarem o corredor. Trocaram olhares apreensivos. O som de suas respirações ecoava na quietude.

 

Só mesmo o tempo pode revelar

O lado oculto das paixões

O se foi e o que não passará

Inesquecíveis sensações

 

    O frêmito dos insetos – que agora começavam a cobrir a pele do velho numa massa de borrões negros – antepusera-se à melodia do piano. Sentia-se sufocado; as pernas das moscas arranhando-o por debaixo do pijama. Não parou de tocar, todavia, nem mesmo quando notou a mão fria de Rute em seu ombro. Vermes rastejavam na carne decomposta, desenhando trilhas por entre os músculos, tendões e ossos expostos daquele toque. O cheiro era insuportável, mas fazia-lhe companhia.

 

Que sempre vão ficar

Pra nos fazer lembrar

Dos sonhos, beijos

Tantos momentos bons

 

    As mãos varicosas do velho pianista moviam-se pelas teclas tal qual aranhas insones. Notas últimas vicejaram na treva – então morreram; estrada de lamúrias por onde forçou-se a andar de pés descalços, sangrando sobre as memórias que deixara pelo caminho.

    Viu-se só.

    O quarto à sua volta agora preenchia-se tão somente pelo silêncio e calor tênue das primeiras luzes – brilho que espalhava-se em feixes compridos por cima do assoalho, rasgando o negrume; tremeluzindo sobre o instrumento.

    Hesitante, o velho levou uma das mãos até o ombro, desejando tocar nem que fosse aquela textura repulsiva. Tateou um vazio.

    Josué não era um homem dado às lágrimas, mas, naquele início de manhã, após fechar a tampa de madeira do piano, lembrou-se de chorar mais um pouco – só mais um pouco. 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    

 

 

 

 

 



 Gabriel Marinho - Natural de Belém do Pará, Gabriel M. Duarte começou a escrever aos quinze anos de idade, iniciando seu trabalho como contista e, posteriormente, apaixonando-se pela escrita de poemas e pequenas crônicas. Atualmente graduando do curso de Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Pará, almeja produzir trabalhos mais sólidos, visando fundamentar-se entre os grandes nomes da literatura paraense.

 Variações: revista de literatura contemporânea 
           XII Edição - quilômetros de susto: poéticas do não
Edição de Marcos Samuel Costa
2025


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