Resenha
Resenha.
FARES, Josebel Akel e NUNES, Paulo Jorge Martins (Orgs). Epistolas poéticas II. Dalcídio Jurandir e Maria de Belém Menezes. Da piracema ao paneiro de recortes. Belém: Editora Paka Tatu, 2024.
Por Gutemberg Armando Diniz Guerra
Dando sequência ao trabalho de recolhimento e publicação das cartas trocadas entre Dalcídio Jurandir e Maria de Belém Menezes, os professores Josebel Akel Fares e Paulo Jorge Martins Nunes apresentam o segundo volume compreendendo as correspondências entre os anos de 1976 a 1979, completando o período de 9 anos iniciado 1971, em que eles se comunicaram por esse instrumento.
Dos textos introdutórios, foram mantidos os que tratam da metodologia de trabalho e da apresentação de Maria de Belém Menezes. Foram acrescidos textos de Isabelle Pantoja e Daniele Lobato, tanto quanto um inspirador depoimento de Mônica Fares sobre a sua participação e o efeito que a manipulação e organização desse material provocaram nela. As manifestações desses jovens pesquisadores é prova cabal de que os professores organizadores cumprem, com esse projeto, não só a missão de produzir conhecimentos, mas a de formar quadros da melhor qualidade para perpetuar as buscas com rigor metodológico e entusiasmo. Veem-se anexadas a esse segundo volume duas resenhas: uma assinada pelo professor Joel Cardoso, dando o tom do valor desse tempo de escritos em cartas produzidas artesanalmente, envelopadas e postadas em agências físicas de correios, encerrado pelas novas formas de comunicação eletrônica. A outra resenha é de minha autoria reagindo e manifestando o aprendizado que a leitura desse material proporcionou acrescida, mais ainda, quando dos encontros com os organizadores em momentos muito preciosos, recheados de comentários e esclarecimentos sobre essa tarefa que desenvolveram com esmero.
Ter acesso a este material organizado de forma tão sistemática é desfrutar da possibilidade de leitura precisa sobre a cidade de Belém dos anos 1970 do século passado e do seu povo, através do olhar de dois expoentes da cultura amazônica, envolvidos intelectual e emocionalmente com as transformações da sociedade brasileira e suas contradições. Maria de Belém, presente na cidade amazônica e acompanhando todos os seus movimentos, completamente envolvida em cada uma das suas manifestações, envia registros, principalmente recortes de jornais, para Dalcídio Jurandir que os analisa e comenta com um distanciamento que os qualifica ainda mais, em uma espécie de regard croisé de precisão clínica, cirúrgica, profética.
O período em que as correspondências ocorrem é muito intenso do ponto de vista político no país e expõe como os cidadãos de Belém acompanharam as transformações da sociedade brasileira naquele período e nesta cidade. O debate institucional sobre a gestão do estado e a memória da Amazônia, as polêmicas entre políticos como Jarbas Passarinho e o sociólogo e jornalista Lúcio Flávio Pinto, a presença marcante de Waldemar Henrique ora celebrado ora colocado à margem das disputas políticas pela gestão da cultura, o reconhecimento de escritores, professores e políticos envolvidos no executivo, no judiciário e no legislativo são alguns dos outros elemento evidenciados nas missivas.
O mais interessante é que, depois de tudo lido e relido, ainda ficamos com o apetite aberto e com a vontade de conhecer as outras cartas referidas como existentes no acervo pesquisado. Dalcídio Jurandir trocou muita correspondência com amigos ilustres como Jorge Amado, Bruno de Menezes, Nazareno Tourinho e muitos outros. Mais do que isso, encontravam-se, debatiam, refletiam. Talvez a organização e catalogação desse material a ser tratado não esteja com a mesma sistematização que, por um lado a Maria de Belém fez nas cartas recebidas de Dalcídio e, por outro, a família e a Casa de Rui Barbosa fizeram com as cartas enviadas por Maria de Belém. O esforço e o trabalho sobre esse material certamente nos dariam a oportunidade de conhecer outros aspectos da discussão sobre a construção estética e a militância política e humanitária de muitos personagens emblemáticos da cultura brasileira. Que não faltem recursos institucionais, políticos e financeiros para esse investimento de pesquisa memorial e de formação de pesquisadores que já foi demonstrado ser possível quando conduzidos por competências de quadros como os dos organizadores dessa obra!
Os detalhes a que se referem os missivistas nos dão a conhecer o estágio em que se encontrava a medicina no tratamento do mal de Parkinson, do qual estavam acometidos tanto o poeta marajoara quanto a viúva de Bruno de Menezes, mãe de Maria de Belém. Os sintomas, a frequência da ingestão e tempo de ação dos remédios, o controle e os efeitos colaterais que exerciam nos pacientes, tanto do ponto de vista físico quanto psicológico, são aspectos descritos com detalhes pelos autores das cartas em uma via de mão dupla de cuidados e afetos. Em todo o tempo de leitura, sinto como se a Maria de Belém estivesse ao lado de Dalcídio Jurandir a lhe dispensar alento, estímulo, presença efetiva, embora a distância fosse, justamente, o motivo de tantos registros. A semelhança dos sintomas de Dalcídio e de Dona Francisquinha colocam em relevo uma empatia amorosamente poética da parte da filha de Bruno de Menezes no que se refere à atenção dispensada aos dois pacientes. O escritor marajoara retribui com sua verve literária com uma elegância encantadora e que nos remete a um mundo luminoso de querer bem.
Em 1978 as cartas e as referências aos silêncios se tornam dramáticos. Quando os recortes demoram a chegar, o marajoara cobra, embora temendo o pior acontecendo na casa da João Diogo. Dalcídio confessa o temor de não terminar o seu décimo segundo livro, o que de fato acontece. Pede desculpas a Maria de Belém por escrever algumas vezes à máquina por ser mais operacional do que fazê-las manuscritas por conta dos impactos da doença que se agrava e que se torna um tema premente, presente, recorrente nas mensagens trocadas entre o Rio de Janeiro e o Pará. Não é irrelevante que as palavras de Dalcídio Jurandir e Maria de Belém venham, em quase sua totalidade, escritas à mão. As linhas datilografadas, quando aparecem, vem justificadas pelo agravamento do mal de Parkinson ou por se revestir de uma formalidade que exigia um certo rigor caligráfico. Escrever utilizando canetas ou lápis tem ou podem ter um significado maior do que se assim não fosse. Traduzem e expressa um estilo de comunicação artesanal, sanguíneo, cordial, profundamente revelador da intimidade a que se permitiam os missivistas. Nelas se pode sentir os tremores do escritor e os temores de sua correspondente.
Em que pese o caráter confidencial que esse tipo de registro revele, há muita discrição sobre relacionamentos com a vizinhança, amigos, amores, hábitos cotidianos de alimentação, higiene pessoal e boêmia. Digo isso porque em Pranto por Dalcídio Jurandir, Lindanor Celina faz menção a saídas noturnas que teriam feito ela, amigos e amigas em companhia do escritor em seus últimos anos de vida na capital carioca. Pelos escritos de Dalcídio a Maria de Belém, ele revela ter a companhia de Guiomarina, mãe dedicada de seus dois filhos, Margarida e Roberto, até 1977 (p. 247), o que induz a que ele teria vivido seus últimos anos como um ermitão solitário, celibatário, dedicado exclusivamente ao seu projeto literário e limitado pelos efeitos da doença de Parkinson.
A carta derradeira de Dalcídio para Maria de Belém vem datada de 5 de março de 1979. A última mensagem escrita que encerra os envios do Rio de Janeiro para Belém, é datada de 16 de julho de 1979, enviada por Guiomarina um mês depois do falecimento de Dalcídio. Ali ela relata seu cansaço e um luto em curso pela partida do escritor.
Um aspecto considerável que deve ser refletido é a riqueza do que ele, Dalcídio, chama de paneiro ou piracema de recortes que lhe chegavam de Belém, dando conta dos acontecimentos do cotidiano paraense, ricamente ilustrados pelos próprios recortes e pelos comentários entre os missivistas. Além do trabalho de seleção do que enviar e comentar nos bilhetes, havia um custo pessoal e financeiro para que essa correspondência se realizasse com essa intensidade, colocando em relevo a disciplina e acuidade da Maria de Belém. Esse trabalho é inspirador sobre o valor das hemerotecas que vem sendo desprezadas e maltratadas em nossas bibliotecas cada vez mais reduzidas, em que pese o crescimento dos cursos de preparação de bacharéis e técnicos em documentação e arquivo.
Dalcídio Jurandir e Maria de Belém exercem uma militância efetiva, intervindo concretamente na realidade, demonstrando não só o capital político que detêm como a efetividade e importância de gestos solidários com pessoas importantes do ponto de vista cultural, mas humildes, se considerado o aspecto material. É o caso do tratamento que dão à aposentadoria de Tó Teixeira, encorpando a campanha, acionando autoridades e fazendo ela acontecer como reconhecimento pelo trabalho de encadernador, compositor e professor de violão que o dedicado amigo teria exercido durante meio século. Esse registro revela, ao mesmo tempo o lado provinciano de Belém, tanto quanto a civilidade possível, e do melhor padrão, naquele ambiente em que as redes de solidariedade funcionavam com eficácia.
Quem tiver a oportunidade de ler Epístolas poéticas I e II, em respectivamente 207 e 301 somando um total de 508 páginas, certamente terá muito mais cuidados com as próprias correspondências, seja em forma de cartas, cartões postais, convites e recortes que por acaso ainda mantenha guardadas, sem esquecer de que esses documentos valem tanto mais com do que sem os envelopes que serviram de guardiões no transporte ou na guarda desses tesouros. É uma pena que certamente muito dos nossos baús da memória já tenham sido perdidos e incinerados na sanha louca de destruição que assola esse nosso pobre e rico país. Que esses livros sejam um alerta vigoroso para o cuidado que devemos e podemos ter com nossos objetos memoriais, não apenas por nós mesmos, mas por todo um futuro que cobrará registros sobre eles.
Chamou-me a atenção, mais uma vez, o estilo objetivo das mensagens de Dalcídio Jurandir, curto e direto, contrastando com o estilo copioso, espraiado, detalhado, que ele desenvolveu em seus romances, segundo o professor Paulo Nunes conceituado como aquonarrativa. Insisto nessa observação porque estive impressionado por esse aspecto desde o prefácio que ele assina na primeira edição de Menina que vem de Itaiara, de Lindanor Celina. Embora curto, é de uma densidade incontestável, demonstrando que dominava a língua portuguesa com uma competência admirável.
Em tempo, não posso deixar de registrar a dedicação com que esse trabalho foi feito e que se expressa em detalhes singelos, tanto naquele primeiro volume como neste segundo. A abertura e separação entre os anos feita pelo desenho do Muiraquitã, sapinho emblemático atribuído e associado à lenda das icamiabas, nas cartas de 1971 a 1975, e a folha de tambatajá a ilustrar o segundo volume que cobre de 1976 a 1979, são desses mimos a nos manter ligados na cultura amazônica ao percorrer o livro. A mudança de cor da capa dura entre os dois volumes, o primeiro com imagens de Belém vazadas em cinza claro deixando o destaque para o marrom nas letras do título, e o segundo com algo à semelhança de arquiteturas mais modernas, compactas e de concreto, também vazadas em uma cor creme discreta, contrastando com letras vermelhas, mantêm, a meu ver, uma coerência visual que merece observação.
A percepção que tive a partir dessa leitura é que agora, munido com esses recursos, pode-se descortinar toda a poesia contida em cartas, cartões postais, bilhetes e recortes de jornais, revelando a todos nós, como que se deve abrir um verdadeiro presente aos nossos espíritos de escritores e leitores de mensagens afetivas. Todo o agradecimento que possamos fazer aos organizadores e realizadores dessa obra não será suficiente, o que, entretanto, não nos impede de dizer, sempre que pudermos: obrigado Josebel Akel Fares, obrigado Paulo Nunes, obrigado equipe envolvida nessa tarefa!
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