UM CONTO INÉDITO DE EDDA RIBEIRO
Doce de leite
Foi uma fila de cinco - Maria do Carmo, Ana Paula, Soraia, Washington e Solange - esta última a prima dos outros 4 irmãos. O pai, Bicudo, com a escova de engraxar sapatos na mão, aguardava a resposta, enquanto a dona da casa, Malvina, trabalhava em contabilidade molhando o colo com lágrimas.
No conjunto Dom Fernando, bairro Marco, a cidade de Belém era como o resto do Brasil acha que é o Norte: chuva todos os dias. O calor do asfalto não era suficiente para aguentar a umidade conhecida, que escorria também pela testa suada da Tia Glória, senhorinha na casa dos 90 que nunca saía da poltrona suada. Encolhida, a baixinha observava os sobrinhos na sala tomada pelo sol ardido.
Bicudo também era Flávio, amazonense de bigode que certamente sustentou donos de bar por onde andou. Certo dia, entre o brilho da cerveja e o retorno para casa, esmurrou o olho esquerdo da esposa, que dormia angelicalmente. O que se conta é que um dos filhos ouviu um grito, saiu do quarto correndo e bateu naquele que batera em sua mãe.
Talvez não tenha sido o único episódio, pois meter uma colher no casamento era uma transgressão pouco cometida em 1960. Malvina, que viria a reluzir de longe com seu cabelo cor de neve anos mais tarde, era todo o amor com os filhos e as irmãs que moravam ali. Eram Ribeiros e Ribeiras e o nome já impregnado na família grande vinha cheio de histórias sobre o avô, Jorge, também graduado em violência no lar.
Pois, num dia após seu habitual álcool, Bicudo queria curar a ressaca, algo que pode ser remediado com açúcar. Ao abrir a geladeira da casa, descobriu que não restava mais nada dos bombons que guardou ali.
Sentou os filhos e a sobrinha no sofá para descobrir quem tirara seus doces da cozinha. Welington, um dos filhos, não era suspeito, pois era o favorito do pai. A fila permaneceu em silêncio por longos minutos, até que Washington, que já havia se dobrado com o pai, se manifestou. Fui eu, disse.
O rapaz, que a vida e o acaso fez imitar o bigode negro do pai, tinha uma marca registrada: era apaixonado por açúcar. A formiga da família e o rei do tira-gosto e que, certa vez, me preparou um inacreditável sanduíche de geleia com requeijão. Mas todo mundo tem sua exceção. Um dia, quando pequeno, ganhou da prima da mãe um doce de leite, e a ordem era comer uma unidade. Após roubar o pacote inteiro, deu febre e vômito por cinco dias no menino. Dali diante só teve repulsa até do cheiro.
Quando a expiação com a escova de madeira começou, uma das irmãs suplicou. Pai, o senhor sabe que o Washington não gosta de doce de leite!. Na confusão das lágrimas da mãe e da fúria do pai, a mão do garoto ficou mais quente do que a linha do Equador: o objeto chupava a pele em cada lapada.
Foi apenas o rosto rijo da tia Glória, assistindo a tortura de boca fechada, que denunciou a autoria do crime. E assim a fila se desfez.
Edda Ribeiro é jornalista amazônida com experiência em reportagem, social media e comunicação multiplataforma. Foca-se em temas como política, economia e direitos humanos. atuou em veículos independentes como The Intercept Brasil, Amazônia Real e Alma Preta. Atualmente, é assessora de comunicação no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e curadora da newsletter de políticas públicas Pilar.
Edição de Bruno Pacífico, 2025.
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