Artigo de opinião: O legado da COP 30 em Belém do Pará - Gutemberg Armando Diniz Guerra
O
legado da COP 30 em Belém do Pará
Gutemberg Armando
Diniz Guerra
Que eu saiba, nenhuma Conferência entre as Partes foi tão comentada entre nós, brasileiros, quanto essa trigésima que o mundo presenciou, tendo como palco a maior floresta tropical do mundo, a cidade de Belém do Pará com todas as suas virtudes e mazelas e, como protagonistas, antagonistas e coadjuvantes, os governantes, a sociedade civil compreendida por povos tradicionais, nativos, imigrantes, estrangeiros, movimentos sociais organizados e oportunistas de todo o planeta.
Hierarquizado por denominações
associadas à geografia, a Blue Zone era destinada a representantes com poder de
negociação e cientistas credenciados, a Green Zone era mais liberal, permitindo
o acesso à população interessada; a Cúpula dos Povos, na Universidade Federal
do Pará juntou os movimentos sociais em dias de acalorados debates durante a
primeira semana, a AgriZone, montada pela Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária, apresentava inovações e debates sobre os avanços no setor
agrícola convencional e ligada aos empresariado rural e minoritariamente à
agricultura familiar, a Free Zone, localizada na Praça da Bandeira, abrigava
atividades culturais, a En Zone, no Porto Futuro, tinha uma feira da
bioeconomia com produtos artesanais locais ofertados para comercialização além
de um palco destinado a shows. Espaços
como o Complexo Gastronômico da Estação das Docas, o Museu das Amazônias, o
Centro Cultural da Caixa Econômica e do Banco da Amazônia, a sede do Serviço
Social do Comércio, as unidades do Museu Paraense Emílio Goeldi, a Praça
Waldemar Henrique, o Porto Futuro, o Ver o Rio, o Ver o Peso, o canal da
Tamandaré, a Avenida Visconde de Souza Franco e muitos outros locais foram
preenchidos com atividades que envolviam tanto a população local quanto os
visitantes antes e durante os dias da conferência.
Convivendo no clima do evento, embora distante dos espaços formais em que ele se realizava, assisti a uma cerimônia na beira do rio, comandada por uma senhora ornada de cocar de plumas coloridas, cercada por um grupo silencioso, reverente, contrito e atento, tendo do outro lado, ao fundo, um senhor igualmente em trajes indígenas, com a maior parte do corpo exposta, vibrando um maracá, monitorando uma fogueira que incensava a manhã, impondo respeito e concentração.
O local era o que se conhece como “Ver o Rio”, mas que já foi conhecido como a Rampa da Panair e, ancestralmente, algum canto de Mairi, aglomeração dos que aqui viviam quando da chegada dos europeus. Bem ao lado há uma oca denominada Memorial dos Povos Indígenas e pouco adiante uma outra chamada Memorial dos Povos Negros. Dei-me conta de estar diante do que restou de praia do centro da cidade de Belém, apropriada nos séculos XIX e XX pelo Porto do Pará, cais de embarque e desembarque de grandes navios que levavam drogas do sertão e traziam pedras lavradas para edificar palácios, templos e fortificações no processo de colonização que se deu ao longo dos mais de quatro séculos de exploração da natureza e tudo o que ela contém.
Um pedaço
de prece que ouvi da sacerdotisa se referia à água que lambia seus pés, da
linfa que já tinha sido cristalina e pura, que ainda instiga banhistas e
navegadores de canoas e caiaques a terem ali um ponto de onde partir e chegar
em suas atividades físicas e de contemplação do estuário.
O Navio Aeródromo Multipropósito, NAM, maior navio de guerra da América Latina, esteve ancorado no Porto de Belém durante um mês para apoiar as atividades de segurança da COP 30. Tentei visitá-lo por curiosidade, como sempre faço quando temos esses ilustres visitantes, mas não consegui por conta do enorme fluxo de pessoas que anteciparam o esgotamento relâmpago das inscrições feitas pela internet, equipamento que mal consigo manejar.
O NAM partiu no dia 21 de novembro, último dia da
Conferência, com um mugido saudoso que ecoou no início da tarde calorenta dessa
sexta-feira. Durante o evento, exibiu um contingente humano e equipamentos
bélicos em pontos estratégicos da cidade, reforçados pelas outras forças
armadas federais, estaduais e municipais, que davam a impressão de que tudo
transcorreria em perfeita harmonia e em acordos para conter as mudanças
climáticas que se aceleram nesse início de século.
O incêndio em um dos barracões que
abrigava as representações governamentais em tentativas de acordos foi
propalado como mais uma das falhas da organização do evento. Nada comparável
aos incêndios que proliferam e se repetem a cada ano no bioma amazônico. Esse
incidente provocou em mim um sentimento de que ali estava embutida uma
profecia: o clima aquecia e até queimava na zona azul, avermelhando as faces e
fazendo ruborizar os governantes. Blue ou
Red?
Lideranças da situação que apoiaram a
realização do evento proclamam, desde já, os ganhos de visibilidade dados aos
problemas da região amazônica, tanto quanto respiram fundo e aliviadas por terem
chegado ao fim do cumprimento da agenda, ainda que com resultados pífios no que
concerne aos pontos fundamentais e objetivos do encontro. As nações mais
poluidoras não se comprometeram ou votaram contra a redução da emissão de gases
provocada principalmente pelo uso de recursos não renováveis como o petróleo.
Elas vão continuar usando e abusando da exploração e comercialização desses
recursos até que se esgotem. O aquecimento global em mais de 2 graus em pouco
mais de 2 décadas, segundo os cientistas presentes, pode comprometer muitos
aspectos da vida humana. Alguns ricos certamente se prevenirão contra esses
efeitos, os pobres e remediados sofrerão e ninguém lembrará que houve alertas para
a catástrofe que se anuncia.
Economistas devem fazer estudos e
projeções sobre o aquecimento do mercado local durante os dois anos de
preparação e execução do evento internacional. O governador do estado
contabiliza votos pelas obras executadas e visibilidade ganha pela propaganda
oficial e mesmo pelas críticas feitas porque, para políticos, estar em
evidência, pelo bem ou pelo mal feito, é sempre lucrativo.
A agitação intelectual em torno das
mudanças climáticas e seus efeitos concretos no cotidiano das pessoas
certamente foi e continuará sendo um legado inestimável para quem esteve
envolvido nas atividades desse encontro. Estudantes de todos os níveis, universidades,
docentes, pesquisadores, agentes de desenvolvimento, ativistas e reativistas,
cientistas e negacionistas, se posicionaram e se viram obrigados a pensar e
falar sobre o tema. Tudo levava para a reflexão: o calor, as intervenções
urbanísticas, o transporte, a educação, os aspectos sanitários, a água, a
alimentação, a comunicação, a saúde, o desmatamento e queima sistemáticos das
florestas, a arborização e modelo de urbanismo concretado das cidades, o
assoreamento dos rios, as enchentes, as atividades econômicas de natureza
primária como a mineração, a agropecuária...
Obras de arte, músicas e músicos
regionais, danças, museus, espaços culturais, galerias, portos, hotéis,
restaurantes, transportes coletivos, táxis e veículos de aluguel por
aplicativos, lanchonetes, comércio, pontos turísticos, canais de drenagem,
parques, bosques, jardins, hortos e espaços de lazer multiplicados para receber
os visitantes devem permanecer e atrair mais visitantes nos próximos períodos
de férias e alta de viagens nacionais e internacionais.
O maior legado da 30ª Conferência entre as
Partes são as interrogações que restam e só terão respostas ao longo dos anos. Obras
inacabadas terminarão? Unidade de tratamento muito cobrada, anunciada, iniciada
e não inaugurada funcionará? A Vila da Barca vai ter algum benefício com a
instalação da unidade de tratamento que eles não querem lá? A lama e o lodo que
foram jogados na Vila da Barca serão removidos e o espaço requalificado para os
moradores daquele local? Quantas unidades de tratamento de esgoto serão
instaladas em Belém, em que bairros e quando funcionarão? Bairros e moradias
humildes resistirão à crescente especulação imobiliária e requalificação dos
espaços urbanos feita acelerada e açodadamente a pretexto da reunião de líderes
mundiais?
Que mudanças de comportamento serão
incorporadas aos hábitos dos habitantes de nossa casa comum depois dessa
refrega alucinada? As redes sociais conseguirão se impor enquanto espaço de
debate saudável ou continuarão a ser o câncer da sociedade moderna, viciando
crianças, jovens, adultos e idosos a ver o mundo apenas através das telinhas?
Aulas retornadas, clima natalino se
aproximando, desmancham-se os cenários da COP30 ou permanecem eles para que a
vida no planeta siga o curso das reparações e reconciliação entre humanos e não
humanos? Cáustica interrogação!...
Nas disputas de narrativas, a garça
namoradeira e os urubus do Ver-o-Peso foram muito acionados negativamente, como
se fizessem parte de desmerecimento ao local de realização da COP 30. Ora, ora!
Eles fazem muito mais pelo meio ambiente do que muitos humanos que enchem de
poluição a nossa atmosfera!
Mantendo minhas caminhadas matinais, constato
que a apropriação dos espaços coletivos é feita independentemente da vontade e
planejamento dos gestores e das classes sociais. Encontro moradores de rua,
muitos deles catadores de resíduos metálicos, dormindo na lounge area e se
refrescando nos pontos de hidratação instalados ao longo do canal da Avenida
Visconde de Souza Franco, a Nova Doca, enquanto trabalhadores humildes esperam
os horários de entrada no ofício sentados em bancos dispostos para o desfrute
dos que ali circulam fazendo suas atividades físicas prescritas nos tratamentos
de saúde. Eles fazem mais pelo meio ambiente do que muitos líderes formais e
filhos de classes escolarizadas que se embriagam e se empanturram de
sanduíches, pizzas e refrigerantes nas badaladas noites da metrópole.
Samambaias e zebrinas estorricam ao sol
inclemente nas estruturas de vergalhão que tiveram rejeitada a denominação de batismo
como árvores ecológicas. Canteiros se enchem de água e, sem drenagem adequada,
afogam gramíneas e plantas ornamentais dispostas nos jardins, que tendem a
salinizar se não forem feitas canaletas para escoamento lateral do excesso ali
retido. Enfim, não basta instalar equipamentos coletivos e intensificar o uso
qualificado de áreas urbanas. É preciso planejar investimento para o acolhimento
das pessoas em situações de fragilidade, na manutenção e ampliação das
conquistas nos setores básicos, na educação dos usuários em paradigmas
adequados ao conhecimento acumulado, para que a beleza não nos sufoque e mate
tanto quanto vem sendo feito pelas céleres e bruscas mudanças climáticas que estiveram
nas manchetes nos últimos dias desse penúltimo mês do ano da graça de 2025. Que
o Curupira nos proteja da sanha matadeira e desmatadora de nossas florestas,
bosques, parques e jardins, tanto quanto sejamos capazes de construir uma
sociedade fraterna e igualitária!
Variações: revista de literatura contemporânea
XIII Edição - vidas fantasmas: poéticas assombrológicas
Curadoria e Edição:
Bruno Pacífico
e Marcos Samuel Costa
2025

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Preclaro e querido amigo Prof. Dr. Gutemberg Guerra, muito obrigado pelo partilhar do seu maravilhoso texto, belíssima crônica, estética, temática e semanticamente falando. Quanta sabedoria e beleza tem seu texto! Como cronista e paraense, só posso dizer – com alegria, muita honra e sem exagero – que sua crônica faz jus à grandeza da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Valeu, de verdade, meu amigo. Não pude estar presente ao evento, mas não tenho dúvida alguma de que, sem prejuízo das críticas construtivas (as destrutivas não nos interessam, pois não nos merecem), o evento foi coroado de êxito. E seu lindo e maravilhoso texto também o foi, pois faz jus à grandeza e beleza do que se fez em nossa querida Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Parabéns, meu amigo, mais uma vez! E muito obrigado!
ResponderExcluirObrigado pelo texto prof. Gutemberg
ResponderExcluirMuito bom! Parabéns! Abraço!
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