Nomes de cães - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 



Totó era o nome de um cãozinho que animou a casa de nossa família na Ribeira, em Salvador. Na rua em que morávamos havia outros cães famosos com nomes bem diferentes e significativos. Tufão era o guardião da oficina de Osmar Macedo, o criador do trio elétrico junto com Dodô. Era um buldogue com uma enorme cabeça de formato quadrangular, corpo atarracado, temido pela força das mandíbulas, segundo a lenda do bairro, capazes de quebrar o fêmur de um boi. Tenho uma vaga ilusão de que ele teria inspirado os brinquedos de montagem como Legos, Minecraft e suas formas e texturas retas. Watt era um vira-lata de cor caramelada, pequenino em tamanho e que adorava filar a comida de Tufão, seu vizinho frontal, do outro lado da rua, correndo sempre o risco de uma punição letal. Ainda na mesma antiga rua Domingos Rabelo, hoje Porto dos Mastros, havia Cigana, uma cadela de vizinhos queridos que tinha um comportamento de senhora educadíssima de filmes europeus. Mansa, malhada de cores ternas e branco, não inspirava medo nem temor. Na Pituba, casa de um dos meus irmãos e sobrinhos, tinha uma cadela chamada Canina e no mesmo bairro, outra irmã tinha uma dupla de fêmeas Yorkshire chamadas Nina e Lua.

Em Marabá, no final dos anos 80 e início dos 90 do século passado, moramos em um dos campi da UFPA. Uma cadela sem dono cuidava de nossa moradia e nos acompanhava discretamente sempre que chegávamos. Se lhe déssemos de comer, ela se alimentava agradecida. Se não, ela se retirava mansamente, sem reclamar, mas não deixava nenhum estranho se aproximar da casa, quando, então, virava uma verdadeira fera. Afeiçoamo-nos a ela e acabamos por dar-lhe comida algumas vezes, ainda que irregularmente.

Em alguns casos já ouvi as pessoas repelirem ou admoestarem caninos com frases ríspidas e chamando pelo genérico: _Passa, cachorro! Já na casa de Manu, ex-missionário francês e membro da Comissão Pastoral da Terra, Bolinha, cadela branca, tomava intimidade com todos que frequentavam a casa, esfregando-se nas pernas das pessoas, obrigando os donos a, de vez em quando, falarem forte para que ela deixasse os humanos visitantes em paz: _Passa, Bolinha!

Dar nomes próprios a animais de estimação ou de criação tem sido ressignificado ao longo do tempo e espaço. No mundo rural, em fazendas, era costume vacas de leite terem nomes afetivos, de sentimentos ou lugares. Conheci, quando trabalhava na Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia, em Alagoinhas, no final da década de 1970, matrizes denominadas de Brasileirinha, Esperança, Pretinha, Margarida e Malhada. Pedro Calmon, professor da Escola de Veterinária da Universidade Federal da Bahia e que ministrava Bovinocultura, disciplina obrigatória do curso de Agronomia, em sala de aula, fez referência de que era um costume nas famílias da aristocracia rural baiana e nordestina, se dar nome dos patriarcas aos touros reprodutores. Segundo ele, isto era uma homenagem aos ancestrais, e teria algo de nobreza nesse tipo de prática, uma vez que os animais bem cuidados eram associados à realeza. Interpretações mais recentes não seriam tão complacentes a essa apologia ao patriarcado...

Visitando a igreja de Saint Denis, na comuna situada ao norte de Paris, tomei conhecimento do mais célebre depósito de despojos de reis franceses em um único templo. Deixando de lado o aspecto fúnebre e mórbido para alguns, tumbas com esculturas muito bem trabalhadas tinham, em muitos casos, cães representados aos pés de seus aristocráticos senhores. Símbolos de fidelidade, esses animais também representam afeto, força e segurança para os seus donos. Não sei porque se incorporou em nossa língua portuguesa o tratar aos anjos caídos de cão. Aliás, para se qualificar alguém muito perturbador, é comum a expressão: _Aquilo é um cão!

Embora ou apesar de muito se ter acrescido o respeito aos animais, ainda permanecem marcas nos elevadores sociais proibindo o acesso de pets a esses equipamentos, sendo liberados para eles, entretanto, os elevadores de serviço e emergência, com cartazes tentando ser simpáticos.

Tenho visto, cada vez mais, cães nominados com apelidos que anteriormente eram dados apenas a pessoas. Os animais tinham nomes apropriados, ainda que se pudesse identificar alguns com os seus donos ou classes sociais. Pessoas abastadas davam aos seus cães o nome de Rex. Na minha vizinhança belemense, partilhando o mesmo elevador que eu, saúdo frequentemente o Walter, o Jack, o Jorge Tadeu, a Lully, a Frida, o Fred, o Thor, o Imperial, o ou a Manu, a Charlotte, o Zidane, o Paquetá, a Zoe, o Joe, a Zini, a Angel, o Bolt, a Duquesa, a Eva e o Juca, tanto quanto se tornou admirado o Alfred Anthony de uma senhora que faz Pilates no mesmo estúdio que eu.



De um querido amigo que possui casa em Mosqueiro, há muitos anos atrás, a imponente figura de Charles era temida pelos visitantes e muito bem monitorada pelo caseiro e por aquele animal enorme. Entre os familiares de Belém, lembro do Nick e da Rebeca... Um querido amigo e colega de universidade tem uma cadelinha adorável chamada Luluca! Em Cuiarana tivemos alguns emblemáticos nomes de cães vizinhos como a Fofa, o Tekito, o Zeus e uma infinidade de outros sem nome que viviam deitados no asfalto quente da tarde e noite do lugarejo, desdenhando dos veículos dos veranistas e moradores permanentes.

Entre os mais humildes não tenho ouvido mais denominações antes comuns como Chulinha e Preto, mas, ao contrário, tenho visto ser chamada de Belinha uma cadela vira-lata abandonada lá pelas bandas do Portal da Amazônia, em Belém. Luís Gonzaga, em Samarica Parteira, uma de suas narrativas melódicas, faz menção ao que seriam nomes de cachorro de pobre, frequentemente com apelativos referentes a peixes: Cruvina, Traíra, Piaba, Matrinchã, Baleia, Piranha, Chibica. Comentando, ele diz que cães de pessoas abastadas tem nomes pomposos: White, Black, Rex, Whisky, Rum.  

Se chamar alguém de cachorro já foi ofensivo, de um certo tempo para cá pode estar sendo um elogio, uma vez que a devoção aos caninos se tornou uma prática corriqueira, cada vez mais difundida e valorizada. O tratamento dado a eles com banhos, tosas e cuidados médicos é algo de muito digno e impressionante.  A expressão dia de cão para se referir a um dia cheio de dificuldades parece ter sofrido um certo desgaste ou perda de sentido semântico.

E na política? Não é que uma cadela sem raça definida acabou entrando na cena quando da subida na rampa do Planalto junto com o único tri-empossado presidente em 2023? Ela teria sido adotada durante o período em que Luiz Inácio Lula da Silva esteve preso em Curitiba e findou sendo batizada como Resistência, simbolizando o período de provações e superação a que o político esteve submetido, impedido de se candidatar nas eleições anteriores àquela em que veio a se sagrar pela terceira vez com o mais alto cargo da República brasileira.

Embora tenha muita simpatia e admiração por animais, não sou dos que os têm sob mimos e afagos diários. Sei do poder terapêutico de suas companhias e admiro quem os trate da melhor forma possível. Entretanto, cioso do meu espaço e do quanto esses estimados animais atraem da atenção dos familiares, amigos e entes queridos, costumo dizer que em minha casa não admito concorrência, o que normalmente provoca risos, uma vez que poucos assumem a posição de igualdade tanto quanto eu tenho feito e de público. Não sei, entretanto, se eu ficaria confortável se encontrasse por aí alguém tratando o seu animal de estimação pelo meu prenome. Por maiores e convincentes que possam ser as justificativas, vou ficar muito desconfiado, desconcertado, com uma pulga atrás da orelha e de orelhas em pé, para dizer o mínimo.



Variações: revista de literatura contemporânea
XIII Edição - vidas fantasmas: poéticas assombrológicas
 Curadoria e Edição: 
Bruno Pacífico
e Marcos Samuel Costa 
 2025

Comentários

Postagens mais visitadas