A mística no futebol - Gutemberg Armando Diniz Guerra
A constatação de que a razão e a técnica não têm dado conta de levar o Esporte Clube Bahia ao sucesso pleno, qual seja o título de campeão brasileiro, me provoca reflexões que extrapolam o mundo físico. A metafísica se impõe nas minhas análises e possíveis posicionamentos como torcedor do esquadrão de aço desde a mais tenra idade e agora, me julgando maduro, volto à infância e ao apelo às divindades.
Assim como, andei a explicitar possíveis razões para o funcionamento burocrático da gestão do clube de minha predileção a partir das transformações na constituição administrativa, assumindo uma lógica empresarial, com os investimentos vultosos de capital internacional, agora me atenho a acalmar minh'alma e a de meus parceiros de torcida, apelando para as mudanças simbólicas ocorridas no campo da crença que move os nossos vibrantes corações.
As equipes, costumam ter os seus mascotes, originalmente animais representando força, determinação, combatividade, agressividade, nobreza e outros atributos positivos, sendo históricos e muito recorrentes os símbolos heráldicos com leões, águias, raposas, ursos, galos, pombos, dragões. Os adversários tratam ou detratam os seus rivais, atribuindo-lhes apelidos e mascotes com características depreciativas e jocosas que, em alguns casos, se convertem positivamente como representações de sorte e humor. Urubu, porco, mucura, rato, japiim, sardinha, tubarão são alguns exemplos que ilustram o uso do bestiário nas representações futebolísticas.
Houve um tempo em que as energias sincréticas da religiosidade baiana, calcada na cultura africana animista, incorporavam elementos do judaísmo-cristianismo-budismo-espiritismo e outras confissões, fossem elas singulares ou plurais. O importante é que esse caldo levasse o Esquadrão ao triunfo. Nesse sentido, em dias decisivos dos campeonatos em que a equipe tricolor estivesse atuando, as encruzilhadas da cidade se enchiam de oferendas, ebós, bandeiras, escudos e os corpos se enfeitavam de fitas nos pulsos, guias no pescoço, e levavam-se para os estádios, bares ou pontos de reunião em que estivessem rádios ou televisores ligados na hora da competição, bonecos de pano simbolizando o rival amordaçado, apeado, espetado, sem negligência às aspersões com água benta, pós-de-pemba, folhas de arruda, patuás e amuletos que favoreceriam os atletas a vencer o adversário no campo de disputa.
Existem vários jogadores que se notabilizaram tanto pela performance como pela forma de celebrar os seus tentos de forma própria, sem apelo a divindades ou ligações com o mundo espiritual. Pelé saltava e dava um soco com a mão direita no ar. Sócrates comemorava plantado no chão, com o punho direito fechado e erguido, em geral na área do adversário. Cristiano Ronaldo é conhecido por um gesto de corrida, salto girando 180 graus, aterrisagem com os dois pés no chão e um grito grave dizendo “siiiiii”, muito admirado pelos seus fãs. Cole Palmer faz um gesto esfregando as laterais dos braços com as palmas das mãos, representando a frieza com que marca os seus gols.
Os tempos mudaram e o que se tem visto são atletas orando, implorando e dando graças em forma de gols convertidos por pênalti, falta na meia-lua da grande área, escanteios ou falhas da defesa para que se alcance a meta. Os agradecimentos têm vindo em mensagens evangélicas pronunciadas nas entrevistas plenas de glórias, améns e graças a Deus pelas concessões feitas. Há quem se prepare com camisetas sob o uniforme para exibir o agradecimento com o nome do crucificado, principalmente em casos em que o atleta esteja passando por momentos de crise, com abstinência de tentos e finalizações. Os juízes não têm como controlar essas manifestações com advertências nem são eles ousados a ponto de proibir que o filho de Deus ou o próprio entre em campo para decidir a favor deste ou daquele clube.
No jogo do Clube do Remo com o Cuiabá, no dia 24 de outubro, ainda sob a influência da piedosa devoção manifestada pelo Círio no segundo domingo desse mês, um dos jogadores entrou em campo com uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré carregada solenemente nos braços e ganhando o primeiro plano da imagem televisiva. O jogo terminou com um placar favorável ao clube paraense e possivelmente muitos deverão render homenagens e pagar promessas no próximo Círio por esse triunfo. Como será o ex-voto? Talvez uma imagem de santo ou santa vestido de calção, camiseta e chuteiras com o escudo do time e os seus respectivos patrocinadores.
Não estranhem se começarem a ouvir invocações associando os santos e divindades a adjetivos e predicados do mundo das chuteiras: Valei-me, meu Santo Expedito das defesas impossíveis! Graças a Nossa Senhora da Pelota Venenosa! Sangue de Cristo tem poder de goleador! Ave Maria das Chuteiras Milagrosas! Sem falar nos times com nomes de Santos (ops!), que proliferam há muito por aí, como São Paulo, São Cristóvão, São Lourenço, São Bernardo...
Sim, os tempos mudaram e, pelo visto, há mais jogadores em campo do que os onze de praxe prescritos nas regras do certame, em que pese serem fortes os argumentos de que o vil metal, estrume do maligno, ande a fazer das suas, reunindo em equipes tecnicamente muito bem treinadas virtuoses do campo futebolístico. Nesse caso, há que se analisar quais serão mesmo os fatores decisivos nos placares e desempenhos dos grupos que vestem a mesma camisa: se fatores do mundo real ou se outros vindos de universos que fogem à compreensão dos pobres e dos mortais...
XIII Edição - vidas fantasmas: poéticas assombrológicas
Curadoria e Edição:
Bruno Pacífico
e Marcos Samuel Costa
2025

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