Raízes - Gutemberg Armando Diniz Guerra




   A impermeabilização das ruas, parques, canteiros e tudo o que era natural, com a exposição da terra e das plantas vem sendo uma tônica nas cidades cobertas de cimento, pedras lavradas e asfalto. As pessoas protestam contra as calçadas irregulares e começam a acusar as árvores de serem as principais responsáveis por essas mazelas, como se elas não estivessem ali antes e como se não merecessem nada em troca pelos benefícios que trazem em sombra e frescor.

Comecei a ter um diálogo humano-vegetal desde que comecei a perceber a exposição das raízes nas calçadas por onde ando e a fazer associações que os meus leitores poderão estranhar e até proporem que eu busque alguma terapia para alucinações ou comportamentos anormais. Comecei a ver pés – mas não é assim mesmo que costumamos chamar à base das plantas? – em quase todas elas. Não são pés por associação à base, simplesmente, os que passei a ver desde as minhas observações das imagens que captei. São pés descalços, descomunais, enrugados, que parecem sair da terra a manifestar um movimento como se dispostos a caminhar pelo mundo, ameaçando sujar de terra as vias por onde passem. São pés maltratados, cheios de calos, enegrecidos pelo tempo, com cicatrizes de cortes feitos aleatoriamente ou por maldade.



Parecem pés pré-históricos, de seres extintos pelo deslocamento do eixo da terra por algum choque de monstruoso meteoro. Mas, não são fósseis inertes de pés! Seus formatos curvilíneos, torcidos, retorcidos têm, ou dão a ideia de ter energia, movimento, vida, animação, alma.

Em alguns lugares as raízes não são tão grossas, mas se apresentam como filamentos que vão sendo expostos com a retirada da terra pelas chuvas, terras lavadas e transformadas em areias que correm para os canais de drenagem naturais ou construídos, em um estranho movimento de formar espécies de praias nas valas e canaletas.



Comecei a ficar curioso e, mais do que gravar na memória cerebral, desconfiando de mim mesmo, passei a fotografá-las no aparelho celular, descarregar em um arquivo no computador, e projetá-las para entender o que essas imagens podem me dizer. Toda vez que faço isso, olhando-as detidamente, em casa, me vêm ao espírito as aulas de Física dos Solos, Fitotecnia, Fruticultura e Fertilizantes e Fertilização com os professores Flávinho, Geraldo Pinto, Clóvis Sampaio e José Vasconcelos. Todos eles falavam dos processos de nutrição dos vegetais e da relação água-solo-planta e como o homem poderia interferir aproveitando do que dali pudesse acontecer, resultando em produtos usados como alimento, indumentária, materiais de construção e de utilidade para o conforto na habitação ou nos lugares de vivência.

As ruas de terra batida, cobertas de gramíneas e outras ervas estão se transformando em vias de circulação de veículos e pedestres, com árvores e arbustos sendo reduzidos a ornamentos ou a nada que interesse aos humanos. Quando muito lhes deixam alguns centímetros quadrados em torno da base, a título de canteiro, sem nenhuma piedade nem compaixão para que possam absorver o orvalho ou as gotas de chuva ou garoa que por acaso lhes ultrapassem as folhas da copa.

Com o espaço de respiração e crescimento restrito, as raízes arrebentam lenta e rebeldemente as contenções feitas em concreto e betume, erguem placas e fazem rachaduras que permitam que a simbiose com fungos e insetos se realize, a despeito da pretendida assepsia proposta e executada pelos homens.

Árvores centenárias não precisam apenas de espaço aéreo, elas precisam também de chão, de terra, de água que lhes irriguem raízes, caule, folhas, flores e frutos. Estremecidas pelo rolar frenético de veículos leves e pesados, açoitadas pelos ventos das mudanças de horários e estações, elas soltam galhos, folhas e frutos ou tombam inteiras, fragorosa e sonoramente nas vias públicas como em um estranho gesto de protesto contra a violência que se lhes impõem.



Costumamos olhar mais para cima do que para baixo, ainda que seja dos pés que venha a sustentação das maravilhas que formam túneis verdes e oferecem saborosos frutos nas manhãs e tardes de fim de ano nessa cidade de Belém. Parques e jardins novos são construídos na cidade, mas com uma indigência vegetal flagrante.

Ainda assim uma população romântica faz piqueniques nas horas de calor ameno, aproveitando sombras casuais de edifícios altos ou de paredes improvisadas de barracas e coberturas de lona plástica. Estamos nos acostumando a uma natureza artificial, a um verde pálido, a poucos pássaros cantando ou se apresentando como representantes de uma fauna em desaparecimento ou adaptando-se a condições precárias de uma cidade cinzenta.

Afastamo-nos cada vez mais do chão, da terra, da relva, das raízes... Quero-queros se adaptam ao revestido Canal da Doca e dividem com as garças o repasto imundo do lodaçal. Meia dúzia de marrecos se refrescam no espelho d’água do Porto Futuro, emoldurado por pedras crespas e ferruginosas, sem ninfeáceas nem qualquer tipo de vegetação aquática que lhe empreste alguma beleza.



Os palmípedes são alimentados por ração industrializada e põem seus ovos em moitas aleatórias ou em qualquer lugar que lhes deem alguma segurança de poderem chocar quando lhes permitirem. Uma profusão de obras artísticas é exposta, principalmente nos finais de semana e durante eventos do calendário anual, em particular em outubro (Círio), novembro (COP30) e dezembro (Natal).

Os eventos nessas paisagens estilizadas não deixam de ser raízes culturais simbólicas, enfeitadas, adornadas, ornamentadas, estilizadas, amostradas sofisticada, pomposa e alegremente nas copas naturais ou improvisadas, enquanto os verdadeiros sustentáculos do ainda resistente verde são presenteados com urina, fezes e lixo de humanos e seus animais de estimação em passeios e festas cada vez mais frequentes no centro e nos cantos da cidade em que ainda resiste o encanto pela natureza plantada lá atrás, em um passado cada vez mais remoto.

Finalizo esse texto com um sentimento de frustração por não ter conseguido dizer tudo o que as imagens das raízes que captei permitem. Preciso olhar mais, dialogar mais com as imagens, sentir o que elas dizem e pedir ajuda de quem possa contemplar comigo esses registros do que me levou a escrever essa queixosa crônica.


Variações: revista de literatura contemporânea

XIII Edição - vidas fantasmas: poéticas assombrológicas

 Curadoria e Edição: 

Bruno Pacífico

e Marcos Samuel Costa 

 2025

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