UM CONTO DE ANDRESSA VIANA ROCHA
Antes de ser números, éramos sonhos
Andava pelo lugar sem rumo. Caminhando com a coroa de flores pelo lugar deserto. Sempre gostei de coisas simples. Usando um vestido azul claro como o céu, sempre visitava o vizinho. Um garoto mais velho, de pele amêndoa, olhos verdes escuros como a selva, cabelos cacheados longos moldando seu rosto, ah… achava sua pele tão reluzente…
Um dia quando fui vê-lo, bati a porta. Ninguém atendeu. A sua porta escura como carvalho envelhecido permanecia intacta. Ela não se movia, apenas as folhas das árvores ao redor. Os chiados dos ventos e cantos dos pássaros traziam tranquilidade. Um silêncio que começava a me ensurdecer.
Senti como se as nuvens guardassem o segredo de seu sumiço, igual guardam o sol e a lua.
Nunca entendi por que meu peito doeu naquele dia. Por que eu sentia que deveria entrar, por que as árvores pareciam tristes, qual motivo teria deixado as flores morrerem de tanto lamuriar…
Todos os dias eu voltava lá. Batia sempre três vezes a porta. Prendia a respiração a cada estalo que a madeira fazia quando as minhas esperanças floresciam. Mas todas as vezes, eram reduzidas a espelhos destroçados, nos quais só via a minha imagem triste encarando uma casa vazia.
Os anos foram passando, meus cabelos de loiros foram a marrons, tal como a pele que ele tinha. Sua falta fez meu coração arder, os olhos sangrarem e minha garganta se fechar.
Tudo o que sentia vontade de dizer eu anotava, caso um dia ele voltasse eu poderia falar tudo o que guardei em meu peito por todos esses anos. Um caderno cheio de pensamentos sobre as coisas, o tempo, pessoas e flores…
Estava eu um dia colhendo flores, pois queria planta-las em seu quintal, pois as suas tinham morrido com sua ausência. Uma sombra grande surgiu tampando meu sol, achei que seria um lindo eclipse, mas ao olhar era um homem. Um cara alto, robusto. O ar pesava ao seu redor, sufocando meu suspiro. Ele apenas sorriu em minha direção. Eu sabia. Eu já sabia. Eu poderia ser uma adolescente mas eu sabia que quando uma flor murcha, não há chance dela retornar ao seu brilho.
As flores ficaram esparramadas, as pétalas voaram junto da minha inocência. Meu cesto estava deitado do meu lado… feito por ele. Com tanto carinho, minha lembrança dele estava quebrada. Quebrada era eufemismo. Por quê…? Por que tinhas que levá-lo? Oh meu Deus mudo, tens de me falar! Levasse de mim tudo, mas precisava levar justo o cesto que carregava o esforço da única pessoa que se importou comigo?
Meu corpo estava dolorido, sujo. Sujo de terra, barro, coisas que nunca imaginei encostar estavam manchando minha alma. Eu não plantei as flores.
O que restava do cesto ficou com as mudas da alegria e esperança, naquele canteiro não fazia mais sentido retornar.
Eu não saí de casa. Ficava na minha casa vazia no banho. Esfregava, esfregava… lavava com os mais diversos produtos pra tentar lavar o que ele havia feito. Não funcionava. Se ele estivesse ainda por aqui ele teria ouvido meus gritos. Ele teria ido me ajudar?
Meu ressentimento contra homens começou a subir, e a saudade que eu sentia do rapaz se esvaneceu. Parei de bater a porta. Parei de olhar a janela esperando uma visita que nunca vinha. Os cuidados que ele teve comigo, que sua mãe teve comigo, começaram a ser uma lembrança distante.
Os dias passaram lentos.
Um igual ao outro, a única diferença era a cor do céu, cada dia mais cinza… assimilei que era um sinal divino da minha alma envelhecendo e obscurecendo antes do tempo.
Em uma tarde de primavera veio um estrondo. Não sabia da onde vinha. Mas aí eu vi. Diversos homens fardados, com armas, tanques, tudo em frente a minha casa. Minha xícara de camomila caiu no chão. Espatifou, estilhaçou-se, e nesse momento, eu senti medo. O mesmo medo que senti ao ver aquele homem. Eu sabia. Era uma guerra. E minha casa era o campo de batalha.
Os barulhos eram altos, eu ouvia os gritos, tudo debaixo da mesa da sala. Escutava os passos pisando nas margaridas, nas bromélias, em todas. Meu medo não era só morrer, era reviver aquele dia. O dia que minha inocência foi tomada.
Não sei se existe um Deus, mas se existe eu gostaria de agradecer a ele. Pois pelo menos nessa vez ele me poupou de sofrer mais em vida. Uma bomba foi lançada e um dos seus destroços me matou na hora. Estava em casa, com um vestido branco, tentando demonstrar a pureza que não existia mais. Uma coroa de flores azaleias, feita com ramos que cresciam nas minhas paredes.
Era como um sonho, um clarão branco e o cheiro de queimado onde um dia houve apenas os sons das risadas nossas, quando você me fazia rir, quando eu tropeçava ou errava grotescamente o significado de uma flor.
Quando finalmente meus olhos se abriram, eu estava sentada em um lugar frio. Mas eu não sentia nada. Quando olhei para baixo estava com a mesma roupa, mas dessa vez estava translúcido. Eu não acreditei. Eu estava no meu túmulo. Sentada no meu túmulo. Li a placa que haviam posto, não havia nada além do meu primeiro nome. Ninguém me conhecia muito bem, era de se imaginar.
Via pessoas todos os dias. Elas vinham ver seus parentes que haviam morrido, mesmo que elas não pudessem ver, muitos deles choravam ao ver que não estavam sendo esquecidos. Eu não via ninguém. Ao menos alguém se deu o trabalho de ainda me pôr uma lápide.
Eu desisti de esperar, quis ver minha casa de novo. Eu me levantei, e caminhei, caminhei e caminhei… quando cheguei a minha rua, tudo estava bem. Não haviam muitas casas, mas ainda estava tudo normal, haviam reformado as coisas. Quando cheguei à minha casa, estava seus destroços. Ninguém ousou encostar nela. As vinhas tomavam as pedras caídas. Eu não sei o que eu esperava encontrar, esperava flores e velas onde um dia foi minha casa. Esperava que se lembrassem de mim. Esperava que ao menos sentissem dó ou pena. Mas nada. Nunca nada.
Eu olhei para o lado, meu coração parou em minha garganta. A casa ao lado havia luzes acesas. Alguém estava em casa.
Meu coração parecia que havia voltado a bater, a ansiedade, angústia e saudade estava tudo voltando. Eu fui até a porta. Eu bati três vezes. Eu esqueci que não havia mais um corpo me barrando de passar pela porta. Eu entrei. Lá dentro todos os móveis não estavam no mesmo lugar. Alguns eram novos, poucos eram como eu lembrava. O cheiro da lareira queimando me chamou atenção e aí, ao olhar pro centro da sala eu o vi. Tal como um sonho.
Ele havia voltado. Tarde de mais para vê-lo em vida. Não havia percebido que tantos anos haviam se passado, suas feições já não eram mais jovens. Em suas mãos tinha uma criança. Ela era branca, com olhos verdes escuros como a vertigem da floresta à noite. Pera… ela seria filha dele? Ele havia me abandonado sem nunca me dar explicações por uma mulher? Eu não conseguia acreditar. Meu coração que era morto há muito tempo doía.
Enquanto lágrimas presas não escorriam, ele brincava com a criança que tinha uma idade em torno de quanto tempo eu estava morta. Enquanto minha última esperança de ver ele, achei que na morte ele se comoveria, mas nem isso. Estava certa em odia-lo. A criança foi para o andar de cima, que era novo, pois antigamente era uma casa simples.
Ele olha para a porta como se me visse. Mas eu sei que não vê. Sei que ele não se importa mais. Eu saí por onde entrei. As lágrimas que achei que alguém morto não poderia ter começaram a correr. Molhando as minhas bochechas, molhando meu vestido. Minha alma que ainda havia a mancha daquele homem, estava ainda mais fragmentada, pela dor de ter sido o “ninguém” para alguém que foi o “tudo” para mim.
Eu voltei ao meu túmulo. Vi as estações sentada lá. Sem mudar nada. Nem piscar mais eu piscava. Chegou o dia dos mortos, o local parecia uma festa, tinha comida e velas para todos os lados, os fantasmas que morreram cruelmente estavam ficando cada vez mais claros, como se toda a dor estivesse se limpando. Eu permanecia translúcida com uma mancha negra no peito. Estava só se espalhando.
Ao longe, eu escutei. Sem saber da onde vinha um choro. Era de um desconhecido. Eu fui atrás, e lá estava ele. Um rapaz branco, alto, magro lendo meu livro. Aquele das pequenas coisas que sempre quis contar ao homem que tinha meu coração. Ele lamentava minha dor. Ele lia as doces palavras que eu escrevia sobre como eu cuidava do jardim dele para quando ele voltasse, como eu cuidava da cesta que ele fez quando a da minha mãe quebrou. Como eu estava dolorida da dor que senti quando o cesto dele quebrou. Da marca de saudade que ele tinha deixado em meu peito. De como eu o perdoaria se ele voltasse. Ele chorava como se a dor fosse dele.
Eu senti… conforto. Me senti ouvida. Reconhecida. Mesmo sem meu nome, mesmo sem ele saber quem eu era, ele sabia da minha dor. Só isso já me bastava. Lágrimas que não derramei por três invernos, escorreram. Não foram de tristeza, mas de alegria. A mancha no peito até diminuiu, mas logo em seguida se alastrou novamente. Pois do lado, estava o causador da dor, do sentimento de abandono, de angústia e choro. Ele estava em sua casa, olhando para o mesmo rapaz que lamentava minha morte em frente a minha casa. Pela primeira vez, eu olhei em seus olhos novamente desde que foi embora. Da última vez vi apenas seu sorriso. Dessa vez vi a dor. Vi talvez arrependimento. Finalmente reparei em suas linhas de expressão, que mostravam cansaço, remorso e até culpa. Mas isso não pagaria, nunca, a dor que eu senti.
O rapaz que lia há uma hora, levantou-se e olhou diretamente para a janela do meu antigo vizinho, encarou-o. Olhou com os olhos marejados e inchados, como se apenas seu olhar pudesse dizer tudo aquilo que eu não pude. Como se ele estivesse lá pra me defender. O homem já em sua meia idade não teve coragem de encará-lo de volta, como se essa fosse a resposta para a pergunta que sempre quis fazer: “Por que foi embora?”
Esse rapaz teve tanta coragem, que foi bater a sua porta. E a única pergunta que fez foi: “qual o nome da garota que um dia foi sua vizinha?”. Ele, aquele que me fez esperar por sua volta por tantos anos, ficou paralisado a porta, encarou o rapaz jovem a sua frente e suspirou, disse meu nome e fechou a porta em menos de três segundos após dizê-lo. Como se esperar mais de três segundos fosse como uma alusão às três batidas na porta que eu sempre fazia.
Ele sabia que aquele era o homem que me fez esperar. O homem que um dia foi o meu amanhã. Ele parecia estar em um conflito interno, como se não soubesse se lhe contava do caderno ou não. Depois de alguns minutos que pareciam horas pra mim que o observava, ele se levantou, ainda com meu livro e foi caminhando até o cemitério. Eu não entendia o porquê, achei que fosse pra visitar algum parente dele, mas ele na verdade chegou ao coveiro e perguntou onde eu estaria enterrada. Meu choque foi grande. Imaginar que um desconhecido choraria pela minha dor e ainda iria ao meu túmulo lamentar minha morte.
Perto dos buquês de saudade que cresciam no cemitério, tinham lágrimas e festa, mas em meus pés tinham apenas lírios, aranha abraçando o local onde fui enterrada, como se elas me confortassem eu senti calor.
Ele chegou ao meu túmulo só pelo primeiro nome. Ele viu que nem flores, velas nem oferendas estavam a mostra. Pois ninguém veio deixa-las. Não sabia dizer se ele estava triste por isso, se ele apenas era muito sensível, mas ele chorava novamente. Via-se em seu rosto que ele se sentia triste, deprimido e melancólico por um luto que não era dele. Eu queria abraçá-lo, eu tentei, mas ele não poderia ver nem sentir. Então meus esforços foram em vão, sendo apenas egoísmo de minha parte.
Um dia ele ainda se esquecerá de mim de novo. Mas, só por hoje, quero fingir que não. Só por hoje, quero acreditar que alguém vai se lembrar de mim e minha vida não ter sido em vão.
Edição de Bruno Pacífico, 2025.
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