cinco poemas para Pedro – de Amanda Vital


distância

 

no lado da cama que guardei a você pendurado

em duas voltas um rosário de pérola com a cruz

voltada para a frente: se existe mesmo proteção

que te guarde primeiro e que te salve em dobro

deixo três travesseiros em linha reta ensaiando

o volume do seu corpo sob a coberta de flanela

antecipo nosso jeito de dormir mantenho fresca

e cheia a garrafa d’água o abajur com luz acesa

a janela entreaberta para ouvirmos os carros de

som com promoções de supermercado o preço

do fubá ecoando em meu bairro um isqueiro no

criado-mudo junto de um quartzo rosa lapidado

que é quando eu não acredito em uma ou outra

conta do rosário em meu lado suspiro a espera

tateio a noite representada em seu devido lugar

preservando o templo com a quentura das mãos

 

vê se tá bom de doce

 

se não tiver ainda dá tempo de pôr mais açúcar

e misturar até desaparecerem os grumos ao lume

brando sempre brando para cozinhar bem o creme

enquanto deixo uma colher de pau vigiar o fundo

da panela: um olho no tacho e um olho na língua

busco nas semanas onde guardei a canela o cravo

aquele limão que roubamos da última casa quando

voltamos do café talvez umas lascas daquilo mas

ainda não está pronto sinto que ainda falta uma

outra coisa uma provocação diferente às papilas

por mais que me aguente bem na frente do fogão

eu preciso mesmo é de uma colher e da tua boca

certa precisa me dizendo furos à condensação do

ar me dizendo se o que tu raspas daqui é doçura

 

c. da r.

 

pedro pega na minha mão e vamos a pé até as caldas

quarenta e cinco minutos de caminhada atravessando

as plantações de uvas de azeitonas tentamos deduzir

à distância as marcas de carros o tempo passa rápido

vez em quando faz muito calor para abraçar os dedos

junta o estreitamento da passadeira olha que remédio

temos de ir um atrás do outro falando alto até chegar

e anda-se tão bem nas caldas que vale a pena chegar

ir à procura das pastelarias com os bolos mais baratos

comer qualquer um que tenha glacê branco para colar

com creme de ovos no céu da boca e entreter a língua

tentamos escrever nas mesas imundas das esplanadas

sujando cadernos livros com nódoas de café migalhas

alguma cinza e necessidade: porque é preciso lembrar

que estamos vivos ainda que em poucos dias de folga

 

língua

 

nós dois falamos a mesma língua – não quando temos

sintagmas que se repetem nomeações que se repetem

ditados populares ecoados pelas ruas a mais de sete mil

quilômetros de distância o alfabeto fonético tão similar

apesar do nosso excesso de uso de consoantes africadas

os mesmos substantivos para fazer existir a mesma coisa

 

mas por entender quando ouço você falar sobre o amor

essa crença esse chamamento esse ineditismo nos unindo

as tessituras do corpo cada sensação paralela prolongada

dentro do outro e por compreender que mesmo com todas

as palavras disponíveis não se constrói um encadeamento

exato para reproduzir entre salivas tudo o que há em nós

 

berlinda

 

somos os sem grupo, meu amor, os desgarrados,

os indesejáveis sentados na última mesa do café,

os das listas de espera, os vencidos pelo cansaço,

os das migalhas, dos fins de feira, dos escanteios

à quadra, somos os notados pela beirada do olho,

somos o silêncio repentino dos outros, o não-dito,

o lado contrário intermitente, as ervas miseráveis

brotadas nas frestas do meio-fio. seguro tua mão

macia e calma: somos mesa para dois, meu amor


Amanda Vital - (Ipatinga/MG, 1995) é editora-adjunta da revista literária Mallarmargens. Bacharel em Estudos Literários pela UFMG, atualmente cursa Mestrado em Edição de Texto pela Universidade Nova de Lisboa. Autora dos livros Lux (Penalux, 2015) e Passagem (Patuá, 2018). Tem poemas e traduções publicados em revistas, blogs e jornais – virtuais e impressos – como Germina, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Acrobata, Equimoses, Zona da Palavra, RelevO e Caliban. Também participou de antologias como 29 de abril: o verso da violência (2015), Ventre Urbano (2016) e Porque Somos Mulheres (2020). Foi curadora da 4ª edição da antologia Carnavalhame. Tem poemas traduzidos para inglês e catalão.

 

 

curadoria e edição de marcos samuel costa

variações revista de literatura contemporânea

2020

I edição

 


Comentários

  1. Poemas quando lidos permitem sentir o sabor da poesia. Gostei da suavidade e doçura destes.

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