O que sobrou de ti - crônica de Douglas Oliveira

O que sobrou de ti
Após meses à beira de uma cama cheirando a fim, sepultei o amor. As receitas de sobremesa forraram o caixão sob o alívio de quem partiu, as bulas de remédio cobriram o corpo frio do coração, embalado numa antiga receita de ser feliz. Um sentimento iluminado à vela celebrou a última missa do teu adeus. Meu peito agora é velado na sala sob o protesto dos gafanhotos, antes definhou no quarto sob a proteção das moscas.
Incenso a casa, perfumo tuas roupas antes que o morto ressuscite, choro teu fim, teu novo amor e o meu esquecimento. Tuas meias aquecem as pernas do defunto que dará à terra doze anos de ilusão; os olhos vítreos saberão mostrar o teu último sorriso aos corações penados? A flor do nosso casamento, que nunca aconteceu, enfeita o terno do corpo estendido no sofá comprado na liquidação do ano retrasado, quem sabe as almofadas aliviarão a tristezas do miocárdio e a traição dos ventrículos. As janelas enfeitadas com teus beijos de batom mumificam o domingo do meu enterro, atravessa o fartum da conversa dos vizinhos e amarrota meus cabelos lavados com o eco da última transa.
Nossas músicas tocam pelo bairro afim de alegrar nossa separação. Tuas lembranças dançam sobre a mesa do dia que foste minha janta, onde tantas vezes devoramos o amor ao meiodia e brigamos no café da manhã. Sepulto o amor ao som da rua, teu lugar preferido para matar o tédio da semana santa. A casa é tua herança, os filhos que não tivemos deixamos nos planos de ontem, as orquídeas em nossa janela ressecaram sob o frio da tua ausência. Recortei nossos álbuns para enfeitar os maços de cigarro, estampei nossas caras para saber que tua boca tragou meu ar alegre e teus olhos queimaram meu descanso sabático.
Hoje é o enterro do meu amor, sob o aplauso dos infelizes e o protesto dos iludidos enterro em meu peito teu nome, tua cara infeliz e teu gozo após a traição descoberta e a promessa do para sempre.
Douglas Oliveira - arquiteto e urbanista, escritor e editor da editora folheando. Em 2017 venceu o Prêmio da Fundação Cultural do Pará, com o romance "Histórias de Chuva", em 2018 publicou o livro de contos Deus e o peixe-voador, e atualmente trabalha no próximo livro, "Elefantes não sabem voar", sem data de lançamento.
curadoria e edição de marcos samuel costa
variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição


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