Sem destino e dentro do estomago de uma baleia: uma leitura de “Garrafas ao mar”



Me desafiei a escrever. Bom, terminei essa semana a leitura do livro de poemas “Garrafas ao mar” (editora Penalux, 2018), da poeta brasileira contemporânea Adriane Garcia. Escreverei aqui sobre dois aspectos do livro: Sua síntese e os aspectos sócio-históricos.
Os versos de Adriane neste livro são curtos, cada palavra ganha dentro do poema uma dimensão a ver com a unidade e significado puro da palavra em sua raiz. Algo gostoso e sonoro para ler em voz alta. Em vários momentos fazia em voz alta a leitura dos poemas, objetivando sentir na pele esse gosto e prazer da palavra que a construção, poética e simbólica, da escrita de Adriane carrega entre símbolos e forças. Deflagrando guerra, como a autora diz, “essa mesma guerra”. Mas qual guerra seria essa? A poeta diz “Que perdemos na / Semana passada”. Apesar do título do livro nos preanunciar coisas ligadas ao mundo submerso e líquido, o livro ganha várias outras formas. É corpo em grande parte, é mulher em suas múltiplas vozes, é um tapete, uma casa, uma lembrança, um animal. É quase um diário sem data, sem linha, apenas mergulhos no que não é só água e nem imóvel. A poeta diz que “A terra vai se limpar / Dos piolhos.” e que nenhum poeta é tão profeta. Ao mesmo tempo que seu poema em 2018 profetizou o que vivemos hoje. Ao mesmo tempo que escreveu “O boi continuará sofrendo / A intuição / Do abate”, fazendo uma fotografia dos dias que tanto nos machucam e arranham nossa saúde mental. Fui ao longo da leitura me perguntando sobre a vida, e o que ela tem sido nesses últimos anos, nesses meses tão tristes e com tantas mortes. De como temos sido engolidos pelo capital, pela ideia de “produtividade”, e tantas outras coisas ligadas ao neoliberalismo. “Garrafas ao mar”, é uma mensagem que não chegou, que não vai chegar, é a carta/e-mail/direct/twitter escrito e que uma baleia engoliu. Como se Adriane quisesse perguntar (ao meu modo de ver, fora dito): quem lê poesia no Brasil? Quem serão as pessoas que vão ler esses poemas? Quem vai receber a “mensagem”? Não uma mensagem só que habita esse livro, mas a mensagem (não num aspecto do bem e do mal ou com teor religioso) quem vem gritando a escrita das poetas negras, das/os poetas negros, das/dos poetas das margens. Pois “mesmo não havendo esperança” vamos viver como se tivesse, pois temos a poesia e a vida. 
Quanto aos aspectos sócio-históricos do livro, é importante perceber como algumas questões ligadas a modernidade, a pobreza, a desumanização vão ganhando potencialidade na construção da poesia de Adriane Garcia. Não estou afirmando que o livro é um grito de protesto, mas estou dizendo (a conta e risco) que “Garrafas ao mar” grita dentro de nós algumas dores, alguns desamores, várias fragilidades, abre a vista para o feminicídio. A voz da mulher nesse livro é firme, é a voz de uma poeta que muito tem sido lida e muito quero continuar lendo. “Chegou inteira / Sem um pedaço do baço / Um pulmão perfurado / Pouquíssimo suco gástrico / Mas inteira” (pag. 67), como no trecho, podemos constatar que na poesia de Adriane, em especial no presente livro, o olhar da escrita avança para onde normalidade não se vê. Por dentro tudo encontra-se destruído, mas por fora aparentemente “inteira”. Sinto como se o poema dissesse “No trabalho tudo inteiro, mas quando chega em casa a violência, a solidão, os traumas, a depressão”. É interessante pensar como vão se naturalizando e como é natural esse sofrimento, esse sofrimento que só é por dentro. E quando se é por dentro “tudo bem”. E mesmo que seja fora, em algum momento, “tudo bem”. A pobreza e a “questão social” no Brasil é alarmante, mas todos os dias ouvimos nos pronunciamentos dos governantes o “Tudo bem”, “Tudo bem se alguns morrerem, tudo bem se pobres, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e idosos morrerem”. Foi esse grito que a poesia da Adriane ressoou por dentro de mim, foi essa mensagem, mesmo que perdida e sem destino dentro do estomago de uma baleia, que chegou a mim e ruminou estas palavras de apreciação da leitura que agradecido recomendo. 

Marcos Samuel Costa - escritor, poeta e editor

Comentários

Postagens mais visitadas