sua doçura sólida - poemas de Fernanda de Paula



Maria dormiu. Não sei se pela tristeza que o cansaço guarda, ou porque era mesmo
madrugada. Sucumbiu ao sono depois de, igual criança, lutar pra manter os olhinhos
abertos e dar conta de tudo, como fazem os anjos. Entrou na pupila do sonho, com seu
sorriso aberto e os ossos puídos de espera. Porque ninguém dá conta de tudo - nem
mesmo Maria, com sua doçura sólida. Maria, alma dividida entre o rio e o mar, devia ter
cantado mais. E quando a vida se desdobra em seca e tempestade, escuto a música dos
seus olhos iluminando as manhãs de sábado. Nosso espelho antigo ainda reflete só o lado
mais belo. Seu jardim de antúrios, mirras e orquídeas ainda vive entre as montanhas de
tantos corações. Quem cuida dele são os beija-flores, os pardais e a chuva. Então, dorme,
Maria. Descansa, que está acabando outra vez um seu dia.

***


Me solto num imenso areal de lembranças não vividas, como se pluma em curva de vento
fosse. Invento o sonho. Não sei se minha fé remove montanhas, mas sinto que traz todas
elas pra dentro da minha alma. Há caminhos acesos na lonjura entre o sertão e o mar.
Corpo e alma do mundo. Incandesce em meus olhos uma espécie de segredo mágico,
revelado apenas no mais fundo dos pulmões da terra. Sigo, sem nunca encontrar o cais,
que não é coisa de existir senão dentro do peito, quando numa distração, se pega
sossegado. 
O sonhador me inventa. É ele que me habita, entranhado até a gema dos ossos, desde o
dia que cheguei, embrulhada nesse mapa de água tatuado em minha garganta estrelada
de desertos. O saveiro que me leva só sabe partir, ainda que o canto da sereia espalhe na
correnteza do tempo a palavra saudade, e a bússola do peito tenha o ponteiro congelado
no norte da volta. E nem a descandeia da mais negra lua nova é capaz de escurecer a
estrada que palmilha cada oco dessa cordilheira. As minas onde cavo não são só de ouro.
São de crença no tempo da paz. Meu canto germina quieto em outros Gerais, coberto por
uma manta tecida com terra vermelha. E basta uma gota de chuva, promessazinha de flor
ou fruto, para fazer brotar uma pérola perdida entre as carnes densas do mar. 
Não sei se meu canto é raiz ou sargaço. E não importa se água ou terra. O mar, quando
está agitado, joga da altura de uma montanha, ou talvez até mais...

***


Vida. Desenho emaranhado. Desemaranhar a trama intrincada, miúdo balé de
agulhas e linhas desenhando num pano histórias silenciosas, contadas pelas
mãos. Os lábios, cerrados. Os olhos, na alma. Em cada ponto, um canto. O
bordado fotografa filigranas do invisível. Tece raios de sol, revela aos olhos o
peixe no fundo d’água, pinta luz da lua em céu cor de rosa... Suas flores não
secam nem murcham. No bordado, tudo é maravilhamento. Arrebata-me também o
avesso, espelho imprevisível dos nós cegos do meu peito riscado de paisagens.
Por horas a fio, o tempo cavalga os novelos, como um beduíno palmilhando o
deserto eterno e monocromático. Um bordado, o oásis! E no fim, resta ao tecelão
o coser dos dias, seguindo, ponto a ponto, num quadro inacabado onde toda
imagem desmorre em matizes nascidas no tear de Deus.

(poemas do livro: Janela enluarada


Foto Heloíza Bortz

Fernanda de Paula estreia como poeta. Mineira de BH e radicada em SP
desde 2002, escreve desde a adolescência, mas seus textos sempre
estiveram a serviço da canção, nas letras de músicas. É cantora,
pesquisadora da voz e professora de canto popular, formada em canto lírico
pela Fundação Clóvis Salgado – MG (2001) e em psicologia pela UFMG
(1998).
Tem 7 cds lançados ao longo de 24 anos de carreira: 1 em MG, com o
grupo Sagarana. Já em SP, a partir de 2002, lançou 1 com o grupo Madeira
de Lei, 3 com o grupo Camiranga, 1 com o grupo Quatro Cântaros e 1 com
Marquinho Mendonça (Gira Menina). Além do trabalho autoral com todos
esses grupos e um cd solo que está em fase de criação, também trabalhou
com trilha sonora para teatro, com narração de histórias, e participou de
diversos cds e espetáculos de músicos mineiros e paulistas.
Em 2015, começou a escrever textos no formato de prosa poética, que
fazem parte do espetáculo Iroko, com o compositor Zé Modesto. Motivada
por pedidos para que as poesias estivessem registradas e não apenas no
palco, escolheu 30 textos, e com sua irmã Letícia de Paula, bordadeira de
mão cheia que assina as ilustrações, misturaram os nomes das páginas de
bordados de Letícia (Bordado Enluarado) e das poesias de Fernanda (Janela
Suspensa), para batizar o livro Janela Enluarada, que acaba de ser lançado
pela editora soteropolitana Carpe Librum, que chegou para somar forças
quando o processo de criação já estava concretizado.


curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição 

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