Três poemas de Andri Carvão
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| (Jean-Michel Basquiat) |
Passeio na praia
Passeio pela praia em pleno inverno.
Não vejo viva alma na areia,
sequer um vira-lata perdido.
Num giro de 360º
um campo vasto e deserto.
Um barco de pesca desliza na linha
do horizonte – até parece parado.
Uma gaivota risca o céu,
mergulha de bico no mar e alça voo
de patas vazias.
Plana por alguns instantes
e empreende novo mergulho.
Mas é inútil – nada. O vento
canta e zune vuh na minha cara.
De toca e cachecol mantenho
as mãos nos bolsos. Junto os pés,
e um filme passa diante de meus olhos:
a luta da gaivota pela refeição do dia,
o barco pesqueiro ancorado no horizonte
e a praia desolada.
Sem turistas nem ambulantes,
sem barracas nem cadeiras,
sem guarda-sóis nem esteiras,
jogos de areia ou esportes radicais
e tudo o mais que movimente a praia.
Somente as ondas, as ondas,
elas não cessam: o vai e vem da arrebentação
troca detritos por conchas.
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| (Jean-Michel Basquiat) |
O homem do guarda-chuva
O céu desaba lá fora.
O homem paga a passagem
e passa a catraca.
Ele é o único passageiro nesta
que é a última viagem
da linha.
Balançando pra cá e pra lá
entre ruas sinuosas,
apenas ele, o motorista e o cobrador
madrugada adentro.
O homem escolhe o banco alto,
o último antes da porta traseira,
lado direito,
o assento do lado da janela.
Como há uma goteira no teto do ônibus
pingando insistentemente em sua careca,
o homem abre o guarda-chuva,
talvez em protesto.
O cobrador diz "senhor, troca de lugar,
tanto lugar vago aí",
mas o homem do guarda-chuva
finge que não é com ele,
embora seja o único passageiro
presente ali.
A chuva não é passageira,
ela só aumenta.
A goteira se torna ruidosa
e passa a chover sobre o guarda-chuva
do homem do guarda-chuva.
E o cobrador
incomodado com a cena
"senhor, senta em outro lugar,
tá molhando tudo aí",
mas dessa vez
o homem do guarda-chuva,
firme em suas convicções,
não se faz de rogado
e responde a altura ao cobrador
com meia dúzia de palavrões
cabeludos e cabulosos,
uma mão no guarda-chuva
e a outra de punho cerrado
pronto pra luta.
“Eu paguei,
eu sento onde eu quiser”,
resmunga o cidadão de bem
sentado sobre o próprio rabo.
Flores e Trevas
Nem tudo são trevas.
Nem tudo são flores.
Venha, mas venha logo,
largue tudo agora e venha.
Apóie os pés no portão e pule o muro,
se jogue de cabeça na vida.
Escorregue no poste de ferro
da placa de sinalização
ou suba no teto
e salte como um felino
de telhado em telhado
até chegar ao outro lado;
ou pule do muro à árvore
de galho em galho
e ganhe a rua.
O mundo é seu.
Venha, mas venha depressa,
como quem corre na chuva,
como quem foge da chuva
como se fosse ácida,
de uma acidez tão perfuradora
quanto uma furadeira
esburacando seu corpo todo;
como se a chuva anunciasse
o fim dos tempos
com meia-dúzia de raios
e o ribombar de um trovão.
O mundo é seu.
O mundo é nosso.
Venha, mas venha correndo
furando paredes
como uma broca humana,
galgando obstáculos,
desconhecendo o trânsito maluco
da autoestrada,
atravessando os sete mares
(cabelos ao vento,
aos quatro vento).
Sei que você não tem asas
– é um ser etéreo.
Anoitece e amanhece,
desmaterializa e materializa
novamente
ali e além,
aqui e aquém,
cá e acolá.
O mundo é seu.
O mundo é nosso.
O mundo é vasto.
Venha, venha, mas venha voando
como um fugitivo
ou um perseguidor,
como um policial
no encalço de um suspeito
que sequer é um bandido,
como um assassino
atrás de sua vítima,
como um criminoso
que volta ao local do crime
para despistar suspeitas,
como um guarda
que facilita fugas.
Fuja.
O mundo é vão.
O mundo é vil.
O mundo cão.
Indócil. Infértil.
Venha logo.
Bem depressa.
Vem correndo.
Vem voando.
Não importa como.
Não importa quando.
Mas venha.
Só venha.
Vem.
Nem tudo são flores.
Nem tudo são trevas.
Andri Carvão cursou artes plásticas na Escola de Arte Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA – Escola Panamericana de Arte [SP]. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, há textos do autor nas publicações: Labirinto Literário, Libertinagem, Gueto, Aluvião, Originais Reprovados, Subversa, Ruído Manifesto, Literatura e Fechadura, O RelevO, Bibliofilia, Escrita Droide, Germina, Mallarmargens, O Partisano; foi colunista do site Educa2 e participou das antologias: Gengibre – Diálogos para o Coração das Putas e dos Homens Mortos, Embaçadíssima – Antologia Tirada de uma Notícia de Jornal [ambas pela Editora Appaloosa], 7 Dias Cortando as Pontas dos Dedos, edições 1 e 3 [um manifesto contra o fascismo e edição do caos], organizadas por Rojefferson de Moraes, do livro-homenagem a Rubens Jardim e Antologia Ruínas [estas duas últimas pela editora Patuá]. Publicou Polifemo em Lilipute e outros contos [também pela Appaloosa], O Poeta e a Cidade [coleção #breves Gueto #9], Puizya Pop & Outros Bagaços no Abismo, organizou o livro coletivo Marielle’s [ambos pela Scenarium], Um Sol Para Cada Montanha [Chiado Books] e Poemas do Golpe [editora Patuá]. Integra o Coletivo de Literatura Glauco Mattoso, criado pelo profº Antonio Vicente Seraphim Pietroforte e apresenta junto com o poeta Thiago Medeiros o Simpósio de Poetas Bêbadxs.
curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição




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Beleza de poemas!
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