Três poemas de Andri Carvão


Jean-Michel Basquiat ganha mostra no Masp em 2018 | VEJA SÃO PAULO
(Jean-Michel Basquiat)

Passeio na praia


Passeio pela praia em pleno inverno. 
Não vejo viva alma na areia, 
sequer um vira-lata perdido. 
Num giro de 360º 
um campo vasto e deserto. 
Um barco de pesca desliza na linha 
do horizonte – até parece parado. 
Uma gaivota risca o céu,
mergulha de bico no mar e alça voo 
de patas vazias. 
Plana por alguns instantes 
e empreende novo mergulho. 
Mas é inútil – nada. O vento 
canta e zune vuh na minha cara. 
De toca e cachecol mantenho 
as mãos nos bolsos. Junto os pés, 
e um filme passa diante de meus olhos: 
a luta da gaivota pela refeição do dia, 
o barco pesqueiro ancorado no horizonte 
e a praia desolada. 
Sem turistas nem ambulantes, 
sem barracas nem cadeiras, 
sem guarda-sóis nem esteiras, 
jogos de areia ou esportes radicais 
e tudo o mais que movimente a praia. 
Somente as ondas, as ondas, 
elas não cessam: o vai e vem da arrebentação 
troca detritos por conchas.


Basquiat bate recorde para um leilão de artista americano, com 110 ...
(Jean-Michel Basquiat)


O homem do guarda-chuva


O céu desaba lá fora.
O homem paga a passagem 
e passa a catraca.
Ele é o único passageiro nesta 
que é a última viagem 
da linha.
Balançando pra cá e pra lá 
entre ruas sinuosas, 
apenas ele, o motorista e o cobrador 
madrugada adentro.
O homem escolhe o banco alto, 
o último antes da porta traseira, 
lado direito, 
o assento do lado da janela.
Como há uma goteira no teto do ônibus 
pingando insistentemente em sua careca, 
o homem abre o guarda-chuva, 
talvez em protesto.
O cobrador diz "senhor, troca de lugar, 
tanto lugar vago aí", 
mas o homem do guarda-chuva 
finge que não é com ele, 
embora seja o único passageiro 
presente ali.
A chuva não é passageira, 
ela só aumenta. 
A goteira se torna ruidosa 
e passa a chover sobre o guarda-chuva 
do homem do guarda-chuva.
E o cobrador 
incomodado com a cena 
"senhor, senta em outro lugar, 
tá molhando tudo aí", 
mas dessa vez 
o homem do guarda-chuva, 
firme em suas convicções, 
não se faz de rogado 
e responde a altura ao cobrador 
com meia dúzia de palavrões 
cabeludos e cabulosos, 
uma mão no guarda-chuva 
e a outra de punho cerrado 
pronto pra luta. 
“Eu paguei, 
eu sento onde eu quiser”, 
resmunga o cidadão de bem 
sentado sobre o próprio rabo.


Flores e Trevas


Nem tudo são trevas.
Nem tudo são flores.

Venha, mas venha logo,
largue tudo agora e venha. 
Apóie os pés no portão e pule o muro, 
se jogue de cabeça na vida. 
Escorregue no poste de ferro 
da placa de sinalização 
ou suba no teto 
e salte como um felino 
de telhado em telhado 
até chegar ao outro lado; 
ou pule do muro à árvore
de galho em galho 
e ganhe a rua. 
O mundo é seu.

Venha, mas venha depressa,
como quem corre na chuva, 
como quem foge da chuva 
como se fosse ácida,
de uma acidez tão perfuradora 
quanto uma furadeira 
esburacando seu corpo todo; 
como se a chuva anunciasse 
o fim dos tempos 
com meia-dúzia de raios 
e o ribombar de um trovão. 
O mundo é seu. 
O mundo é nosso.

Venha, mas venha correndo
furando paredes 
como uma broca humana, 
galgando obstáculos, 
desconhecendo o trânsito maluco 
da autoestrada, 
atravessando os sete mares 
(cabelos ao vento, 
aos quatro vento). 
Sei que você não tem asas 
– é um ser etéreo. 
Anoitece e amanhece,
desmaterializa e materializa 
novamente 
ali e além, 
aqui e aquém, 
cá e acolá. 
O mundo é seu. 
O mundo é nosso. 
O mundo é vasto.


Venha, venha, mas venha voando
como um fugitivo 
ou um perseguidor, 
como um policial 
no encalço de um suspeito 
que sequer é um bandido, 
como um assassino 
atrás de sua vítima, 
como um criminoso 
que volta ao local do crime 
para despistar suspeitas, 
como um guarda 
que facilita fugas. 
Fuja. 
O mundo é vão.
O mundo é vil. 
O mundo cão.
Indócil. Infértil.

Venha logo. 
Bem depressa. 
Vem correndo. 
Vem voando.
Não importa como. 
Não importa quando.
Mas venha.
Só venha.
Vem.

Nem tudo são flores.
Nem tudo são trevas.



Andri Carvão cursou artes plásticas na Escola de Arte Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA – Escola Panamericana de Arte [SP]. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, há textos do autor nas publicações: Labirinto Literário, Libertinagem, Gueto, Aluvião, Originais Reprovados, Subversa, Ruído Manifesto, Literatura e Fechadura, O RelevO, Bibliofilia, Escrita Droide, Germina, Mallarmargens, O Partisano; foi colunista do site Educa2 e participou das antologias: Gengibre – Diálogos para o Coração das Putas e dos Homens Mortos, Embaçadíssima – Antologia Tirada de uma Notícia de Jornal [ambas pela Editora Appaloosa], 7 Dias Cortando as Pontas dos Dedos, edições 1 e 3 [um manifesto contra o fascismo e edição do caos], organizadas por Rojefferson de Moraes, do livro-homenagem a Rubens Jardim e Antologia Ruínas [estas duas últimas pela editora Patuá]. Publicou Polifemo em Lilipute e outros contos [também pela Appaloosa], O Poeta e a Cidade [coleção #breves Gueto #9], Puizya Pop & Outros Bagaços no Abismo, organizou o livro coletivo Marielle’s [ambos pela Scenarium], Um Sol Para Cada Montanha [Chiado Books] e Poemas do Golpe [editora Patuá]. Integra o Coletivo de Literatura Glauco Mattoso, criado pelo profº Antonio Vicente Seraphim Pietroforte e apresenta junto com o poeta Thiago Medeiros o Simpósio de Poetas Bêbadxs.



curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição 

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