A pena mortal de Ariano Suassuna – ficção de Paulo Fernandes B. Jr

 

 

(Suzy Hazelwood)

Ramon Avelar tomou a decisão na sua 39ª primavera.

– Serei um escritor! – bradou de frente ao espelho, na quitinete onde morava. Não mais um passatempo, daquele dia em diante seria um profissional.

Ramon lera todos os livros de Jorge Amado, uma coisa deplorável; Machado de Assis era superestimado; Mario Andrade, charlatão; a obra de José de Alencar resumia-se a uma anedota de péssimo gosto. A literatura brasileira, com exceção talvez de Raul Pompeia, era repleta de bufões.

Ramon manjava dos esquemas, dos grandes truques. 39 anos de convívio com a espécie humana renderam-lhe um olhar apurado, um aprendizado inestimável, ao contrário dos companheiros da firma, que só faziam para comer, cagar e chorar escondido no banheiro. Escaparia das arapucas do tempo, a aposentadoria miserável e o reumatismo crônico contra o qual teria de lutar até falecer. Era intenso; velhice apenas para os escritores mortais, fracos de corpo e espírito. Por isso demorara tanto a se decidir. Para assumir um compromisso atemporal com a arte você precisa munir-se de confiança absoluta e, dado o primeiro passo, nunca recuar.

Ramon não media esforços para conseguir o que queria, diferentemente dos molecotes dos dias atuais, todos saudáveis, asseados, digitando em notebooks, sitiados em condomínios fechados. Ramon era arrojado, quebrava ossos e trincava músculos quando escrevia; tingia as linhas com sangue escuro. A verve extraída de becos, quebradas, puteiros e velórios. Lambia os lábios, excitado, só de pensar na reviravolta cinematográfica de sua vida. Padrastos, professores, patrões, ex-esposas. 39 anos acusando-o de fracassado, pobre-diabo que nunca acertaria o tino. Não perdem por esperar, os imbecis! Enviaria um exemplar de seu best-seller para cada um. Dedicatória: “Obrigado por permanecer vivo e testemunhar minha ascensão./ Do seu/ [rubrica estilosa] R. Avelar”.

Gastou quase seis meses para redigir, revisar, transcrever o romance e praticar a assinatura com a qual dedicaria (centenas de) milhares de exemplares; largou o emprego para se devotar integralmente, já pressentia o burburinho do sucesso, a exaltação dos críticos. Fama, reportagens, artigos, entrevistas. Novo talento nacional, revelação literária do ano. Dinheirama na conta bancária. Adeus quitinete, serviços braçais, acordar cedo para enfrentar metrô superlotado. Afastaria a soberba, porém, conservaria o contato com as ruas, o cotidiano suburbano ordinário; fonte crua de inspiração. Doaria parte de sua receita para asilos e creches; mídia em polvorosa.

Preparou o projeto do livro. Capa. Apresentação. Formatação ABNT e o escambau. Enviou para o endereço das dez maiores editoras do país. Questão de tempo até a primeira telefonar exigindo contrato de exclusividade. Tencionou mandar a cópia do original para apreciação de algum colega de profissão. Não que fosse relevante, apenas achou interessante estreitar laços com a categoria à qual pertencia. Escolheu Ariano Suassuna, um escritor mais ou menos conhecido, para ser honrado com a cópia do seu manuscrito. Homem de sorte.

Três semanas se passaram sem nenhuma resposta, nem das editoras nem do tal Suassuna. Manteve-se tranquilo, estava convencido de que havia produzido o melhor romance das últimas décadas. Escritor profissional sabe ser paciente. Esperou.

Nove meses depois, uma carta apareceu na caixa de correspondência:

 

“Caro Ramon, a primeira página do seu romance, se é que pode ser classificado assim, não está mau. Aquele ‘concerteza’ na segunda página me faria arrancar os cabelos se ainda tivesse. ‘Com certeza’. Preposição e substantivo.

A.S.”

 

Incrédulo, pegou o original, releu as primeiras páginas. Nada de errado. Triste Suassuna, velho caduco. Leu pausadamente em voz alta a segunda página. Lá estava! Sentiu um troço no peito. Concerteza. Agarrado. Concerteza. Preposição e substantivo. Leu mais uma vez. Concerteza. Outra. Concerteza. Concerteza. Concerteza. As letras rodopiavam em uma miragem palpável, repletas de ternura. Devia ser outra realidade, concerteza. Enxugou o suor da testa, veias turvas saltavam do pescoço, mãos retraíam-se, pernas vacilavam ante a falência iminente; despencou no chão, a cabeça castigando o assoalho da quitinete, cada pancada, uma certeza indissolvível, a mão asfixiante do padrasto na infância (BAM!), a professora de Literatura caçoando de sua dissertação perante a turma (BAM!), a recusa do patrão em lhe pagar a rescisão (BAM!), a ex-esposa parada à porta, de malas à mão, confessando insuportável o seu tipo (BAM!).

Nascido na primavera de 1989, em Colatina-ES, Paulo Fernandes B. Jr. é escritor, professor, estudante de Letras e pai da pequena Elis. Na literatura, embrenha no gênero conto há alguns anos. Admira Tchecov, Hemingway, Lygia, Jack London e possui em casa um singelo oratório dedicado ao Lima Barreto, pai da literatura militante.


curadoria e edição de Marciel Cordeiro
Variações revista de literatura contemporânea
2020
II edição


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