ALUNDIÁ - conto de Gigio Ferreira
ALUNDIÁ
Alundiá localiza-se no extremo Oriente. Entre um mar congelado e um país isolado. Para chegar lá, devemos atravessar duas cordilheiras de montanhas altíssimas.
Alundiá fica boa parte do ano escura... Nas sombras. O petróleo embaixo de suas terras antigas é o que sustenta a frágil e dependente economia do país. Não possui uma produção rica, diversa e variada, mas o que extraíam de ouro negro, era o suficiente para o povo se vestir bem e não passasse pelas agruras da fome durante o ano todo.
As únicas coisas que poderiam ser turísticas em Alundiá eram os mosteiros e os monges. Devido ao frio rigoroso, suas praças e logradouros permanecem a maior parte do tempo sem nenhuma movimentação pelas ruas quase desertas. Lagos e cachoeiras congeladas são atrativos turísticos em toda região. Repleta de pequenos países, entre republiquetas e monarquias tirânicas. Nos dois únicos meses em que a temperatura atinge incríveis doze graus centígrados, os visitantes podem ter a certeza que esse fausto período é o verão por lá. Então as famosas aulas que são abertas ao público, geralmente aconteciam em alguns monastérios exatamente no auge do verão. E para lá se dirigiam muitos alemães, ingleses, franceses, holandeses e suecos. Com o passar dos anos e a fama sempre crescente, para lá também se deslocavam os conhecidos irmãos da Península Ibérica: portugueses e espanhóis. Antes da Pandemia do Covid-19 iniciar seu filme de terror pelo mundo, vivi uma experiência inusitada. Tá certo que essa experiência só foi possível porque a Pandemia estava ainda encoberta e escondida em algum recanto.
E como o mote dessa viagem era justamente uma possível espiritualidade a ser explorada, ignoramos por completo os perigos reais dessa empreitada ao Oriente. E no dizer de muitas autoridades, aquilo era mais uma gripe passageira.
E foi exatamente um poeta lusitano que ao retornar a Belém, nos trouxe essa incrível novidade. Ao colocar os pés na “Mangueirosa”, ligou afobado para mim:
- Gigio, preciso muito te falar uma coisa inacreditável!
- Fala, Confúncio Mergulhão!
- Rapaz, passei um mês em Alundiá... Foram dois cursos que participei por lá!
- Hum... Tu gostas disso né, gajo? Ô homem para ser boa plateia, viu!
- Não se trata disso, Gigio...
- Que foi dessa vez?
- Fiz dois cursos por lá... Um de física quântica e outro de magia, com ênfase na tradição da Lua e na tradição do Sol!
- Olha... Um é primo do outro, saca? Não vejo muita diferença nesse arrozal!
- Gigio... Uma coisa maravilhosa! E tem mais, lá eles não cobram pela hospedagem e nem pela alimentação! É tudo grátis! Um país incrível!
- Hum, então está explicado o teu entusiasmo!
- Junte dinheiro, tanto das passagens aéreas e de algum lanche que tu queiras realizar... Ano que vem, estarei arregimentando um grupo bem maior de pensadores das universidades daqui do Brasil e de Portugal. E aí, topas?
- Confúncio Mergulhão, quantos dias para chegarmos lá?
E nesse momento Confúncio explicou tudo detalhadamente. Tenho impressão que essas agências de viagens não entram em detalhes pormenorizados exatamente por isso. Detestei o lance de neve, cordilheiras altíssimas, frio fodido, mãos ardendo, nariz sangrando e instalações de monastérios. Turismo religioso era alguma coisa do qual sempre fiz questão de manter uma boa e considerável distância... Tanto física como mental. Não me apetece sair de minha querida zona de conforto, onde guardo os meus livros e onde escrevo sem parar, para ir visitar, por exemplo: igrejas. Não faz o menor sentido viajar tanto para ir ver algo que não toque a minha alma sensível. Há malucos para tudo nessa vida. Já vi gente se privando, impondo necessidades para si e família ao guardar uma boa quantidade em dinheiro, e no fim, torrar essa grana toda para ir visitar as ruínas de um campo de concentração nazista. Se eu viajo, quero estar viajando! Deu para entender? Quero estar leve, flutuando nos endereços mais belos e poéticos. Que jamais possam me faltar as garrafas de vinho e os frutos do mar em quantidades exorbitantes. Depois é muito sexo, drogas e Rock And Roll. Mas as pessoas acreditam em cada coisa, né? Acredito que propaganda e turismo constituam a mesmíssima coisa, uma não vive sem a outra. Podem te levar para lugares perigosos, dizendo ser isso, o verdadeiro paraíso.
Então eu disse um rotundo não ao Confúncio Mergulhão. Se ele gostava de mim, então que me presenteasse com umas boas garrafas de vinho do Porto. Mas aí ele tangenciou a conversa de uma maneira que sinceramente falando, não esperava. Disse na maior cara de macaco, que tudo dependeria da acolhida de sua ideia, que se os pacotes oferecidos fossem todos comprados, o meu sairia de graça, isso mesmo, de graça! Não gastaria um centavo do meu bolso com porra nenhuma durante a viagem de ida e na viagem de volta. Parece papo de alucinado, né? E foi mais além, disse que ao voltar, eu passaria a escrever melhor, pois a minha vida mudaria de uma maneira radical, que a minha poesia acabaria atingindo zonas ainda não exploradas pela minha mente racional, que o meu processo de escrita seria afetado positivamente, que como homem, teria até um novo vigor sexual. Porra, quando ele terminou de falar tudo isso, quase tive uma ereção espontânea e imediata. Conseguiu me convencer, o gajo filho da puta.
Estanquei todas as minhas atividades no mês de março. A viagem seria lá pelo dia dez conforme orientações preliminares. Consegui uma pequena mala, onde coubessem roupas para um frio suportável, tais como: luva, cachecol, botas, toucas, boinas, camisas sociais mangas compridas e jaquetas de couro. Uma vez tudo entocado na pequena mala, falei com o gajo pelo telefone:
- Já estou prontinho desde ontem!
- Ok! Amanhã passarei em tua casa, iremos direto ao aeroporto!
- Beleza!
Quando o gajo chegou, me apressei a lhe dizer:
- Gajo, tenho pavor de avião...
- Tenho cá comigo umas doze garrafinhas de uísque doze anos!
- Ah tu estás da sacanagem...
- Sério, apresse-se, pois o voo é daqui a sessenta minutos... E não esqueça que ainda teremos o Check-in a fazer, hein!
- Então vou dar uma última mijadinha e iremos.
Durante a viagem de casa ao aeroporto, fiz um monte de perguntas. Coisa típica de bicho do mato assustado. No dizer dele, aquilo era coisa de: “paneleiro, opá!”. Gíria portuguesa para homossexual.
Quando o pássaro de ferro levantou voo, senti minhas orelhas esquentando. Perguntei logo onde estavam as tais dez garrafinhas de uísque doze anos! Ele riu um pouco e abriu uma das abas do seu paletó e disse:
-Vá com calma Gigio, pegue essa, depois te darei outras! Nada. Virei a garrafinha de uma só vez, garganta abaixo. Ele me olhou assustado. Depois me passou a segunda garrafinha, mas logo me advertiu novamente:
- Olhe, se continuares nesse ritmo, vás ficar embriagado aqui!
- Mano, deixe de frescura!
E novamente virei o conteúdo daquela garrafinha goela abaixo, de uma só vez. Ele ficou escandalizado. Aí quis sonegar a terceira garrafa. Fiz pressão total e ele me deu, mas logo em seguida, alegou ser a última que trazia em seu paletó. Mas não acreditei na lorota e disse:
- Conversa! E se eu botar a mão no lado direito do teu paletó e apalpar?
- Não vais encontrar porra nenhuma!
- Vamos ver...
E novamente virei a garrafinha, direto na boca. Aquilo me acalmou. Mas logo em seguida, a minha sede foi novamente aguçada por uma linda moça empurrando um carrinho lotado com garrafas de birita. Quando o gajo viu a cena, foi duro nas palavras:
- Olha Gigio, educação cabe em todo lugar!
- E uísque também!
Quando a linda moça aproximou- se dos nossos assentos, disse em tom de cantada banal e barata, como falam os homens iletrados e boçais:
- De você eu quero todas as doses!
Ela deu um leve sorriso desconfiado e serviu-me uma dose. Ficou me olhando beber, ficou assustada também, pois drenei o conteúdo despejado no copo com uma voracidade impressionante. Depois do meu lamentável espetáculo, ela indagou-me novamente se queria uma nova dose de uísque. Ora minha filha, é o mesmo que perguntar ao macaco se ele ainda quer comer mais bananas! Hahahaha. Ela só saiu de perto de mim depois que bebi três doses daquela sensacional invenção escocesa. O gajo ao lado só me observava, depois soltou o seu mau humor de padre punheteiro:
- Na próxima não te trago mais!
- Porra cara, tu pareces mãe de miss!
- Mas é que...
- É o quê? Abra o jogo logo...
- É que lá em Alundiá, não se pode consumir bebidas alcoólicas!
- O quê?!
- Lá se pode tudo, menos consumir bebidas alcoólicas!
- E quanto tempo nós iremos passar nessa masmorra?
- Acredito que tudo dando certo... Uns três meses!
- Sua montanha de merda! Seu filho de uma puta!
Aí todos os outros passageiros viraram a cara para acompanhar a baixaria e barraco. Não demorou, apareceu um cara todo fardado e com ares de arrogância no rosto. Disse com toda educação e dureza:
- Acho melhor os senhores se comportarem durante o voo! Aqui há regras funcionando! Por favor, sejam cavalheiros!
O gajo só faltou se enterrar em sua poltrona. Depois disso, virou a cara e não quis mais papo comigo. Só sei que desligaram as luzes e um frio gostoso tomou conta do ambiente. Apaguei. Estava tendo um sonho maravilhoso. Sonhei que estava no vestiário de um time feminino de voleibol. As meninas todas nuas em seus banhos. Estavam eufóricas, acho que tinham vencido o campeonato nacional. Algumas se beijavam na boca, outras se ensaboavam, e outras mais espertas ainda, se lambiam loucamente nas xoxotas. E eu vendo tudo aquilo. Mas o estranho do sonho era que nenhuma delas fazia objeção à minha presença no vestiário da alegria. Será que eu era um fantasma? Mas essa impressão foi imediatamente desfeita quando ouvi uma delas falando baixinho em meus ouvidos: “Oi lindão, posso beijar essa coisa linda e grossa?”. E fui sentindo sua língua áspera trabalhando em meus testículos. Menina esperta e maravilhosa. Quando ela abocanhou a glande, pimba! Senti alguém esmagando as minhas bolas de Natal com uma raiva masculina entre as mãos. Era a porra do gajo tentando me acordar com palavras duras e idiotas:
- Acorda Gigio... Acorda porra!
- Ahãm, que foi?
- Já chegamos...
- Onde?
- Em Lisboa!
- Lisboa? Mas não era na porra de Alundiá?
- Calma, vamos descer aqui primeiro, só depois é que iremos apanhar outro voo, que irá nos deixar em Pequim!
- Pequim?!
- É... Qual é o problema com Pequim?
- Caralhooooooo...
- Vamos, agora limpe a remela da porra dos olhos e vamos embora!
Quase não consegui me equilibrar entre duas pernas. Então disse ao gajo:
- Não é melhor a gente ir para um hotel primeiro?
- Tu tens grana para isso?
- Não!
- Então bico fechado, quem dá as ordens por aqui sou eu!
Fiquei jogado numa poltrona do aeroporto, aguardando o gajo checar tudo para o próximo voo. Duas horas depois, o gajo chega entre sorrisos:
- Estamos com sorte, Gigio!
- É mesmo, e por quê?
- O céu está limpinho em Pequim!
- E quando o céu por lá está sem Deus?
- Aí é o inferno!
- E como é esse inferno?
- Simplesmente eles cancelam o voo e você fica por aqui perambulando feito um homeless!
- Mas não vamos ficar por aqui, né?
- Claro que não, nosso voo é o próximo!
- Ei gajo escroto, que tal umas cervejinhas importadas?
- Já chega de beber!
- Porra, tenho de aproveitar, né? Afinal, iremos para uma colônia penal!
- Não faça dramas, no final, tu vais me agradecer pela excelente oportunidade, é uma experiência única nessa vida!
- Então me espere aqui, vou ao bar beber umas cervas belgas!
- Espere, eu vou junto, também quero beber alguma coisa, mas é café forte e quente!
Enquanto ele demorou quinze minutos para drenar o seu café de vovó do engenho, o mesmo tempo utilizei para secar seis garrafas Long Neck. Ele ficava me espiando com os seus olhares reprovadores sob as lentes dos seus óculos escuros. Aí ele olhou para o seu relógio de pulso e disse:
- Já chega Gigio, vá logo ao banheiro, pois já ouvi chamarem o voo!
- Já chega porra nenhuma, sabe quanto custa uma garrafa dessa cerva belga aqui?
- Mixaria!
- Pois é, metade da metade de um dólar! Por isso eu vou beber mais uma, a expulsadeira!
- Então peça logo, pois irei te esperar na sala de embarque e, lembre-se, daqui a dez minutos!
Bebi mais três, completei a rodada com uma ótima cerveja japonesa. Fui ao banheiro, quando saía de lá, olhei o monitor do tal banheiro me cobrando a bagatela de dois dólares! Porra, mijar custava mais caro que beber. Saudades infinitas do Brasil.
Já acomodados na porra do avião, fiquei observando a língua dos chineses. Era um tal de: tere, te, te, tá cum, te, armicum, tere, te te te tá... E isso foi enchendo o meu saco. Porra, que roubada! Poderia estar na ilha do Mosqueiro, em Belém do Pará... Lá na barraca do Paulinho, tomando umas e outras, vendendo os meus livros para investir em novas rodadas de biritas. Mas não, caí na lábia de maluco transcendental que fuma maconha estragada, olha o resultado: eu dentro de uma aeronave velha e caindo aos pedaços. Resolvi dormir. Quase doze horas depois, fui sacolejado pelo poeta lusitano:
- Ei Gigio, ei Gigio! Chegamos a Pequim!
- Você tem certeza?
- Claro!
- Acho que estamos é em outro planeta!
- De certa forma sim! Mas vamos, pegue os teus panos de bunda!
Descemos em Pequim. Só vi fumaça por lá. Parecia que todos estavam fumando um gigantesco baseado. Que viagem!
Ao chegarmos ao saguão principal, o gajo disse:
- Agora é esperar o ônibus que nos conduzirá até a grande estação central!
- Quer dizer que ainda temos uma viagem de ônibus para encarar?
- Sim...
- Puta que pariu... E demora muito chegar lá?
- Umas cinco horas!
- Caralhoooooooooo...
- Calma Gigio!
- Na próxima tu não me pegas!
Essa breve viagem era o mesmo que atravessar o Brasil inteiro de ônibus até chegar a Belém do Pará. E aqui chegando, descobrisse que o destino final era a cidade de Bragança. E uma vez na terra da Marujada, descobrisse novamente que o destino final era a Vila de Pescadores na praia de Ajuruteua, distante mais três horas de viagem. Coisa que você deveria encarar, pois afinal, era tudo lazer.
Cinco horas dentro de um ônibus aconchegante. A paisagem no caminho era belíssima. Já de saco cheio de tanta viagem e paisagem, finalmente chegamos a grande estação central, de uma cidade que não recordo o nome. Apanhei a minha pequena mala e fui caminhando ao lado do poeta lusitano. Quando atravessamos vinte plataformas, já me encontrava completamente extenuado, foi aí que a porra do gajo lembrou-se de perguntar, em inglês fluente, onde ficava a plataforma fulana de tal, que nos levaria ao país vizinho chamado Alundiá. Resultado: informaram que a plataforma A era a que deveríamos ficar. Lá tivemos de retornar pelo mesmo caminho. Minhas pernas já não sustentavam direito o meu corpo. Esse sacrifício todo estava pedindo uma cerveja bem gelada. Quando finalmente chegamos nessa tal plataforma A, perguntei ao poeta lusitano:
- Ei cara, isso aqui já está virando bad trip!
- Calma Gigio!
- Porra cara, fique um instante aqui... Vou ver se descolo uma cervejinha gelada!
- Desista Gigio, aqui eles só vendem chá verde e, quente pra caralho!
- Porra cara, cadê aquelas garrafinhas de uísque?
- Estão dentro da mala!
- Pegue uma para mim, vai!
- De maneira alguma, o trem está para aparecer por aqui...
- Que escrotidão da porra!
- Calma Gigio...
Uma hora depois, o trem apareceu. Era uma espécie de trem-bala! Disse-me o poeta lusitano, viciado em maconha estragada e cursos de Yoga e meditação. Ao entramos, conferiram os bilhetes e nos mostraram as ricas poltronas onde deveríamos ficar acomodados. Uma vez dentro do trem-bala, lá fomos nós... Para Alundiá... Fazer o quê? Sinceramente falando? Escutar o dia inteiro alguns monges pregando a limpeza do corpo e da mente. Grandes e longas férias aquelas... Possivelmente inesquecíveis! Impossível esquecer uma roubada dessas.
A viagem foi tranquila. Apenas dez horas num metrô de superfície. Adormeci por completo. Comecei a ter sonhos eróticos novamente, dessa vez estava numa ilha repleta de sereias. Algumas eram lindíssimas. Mas aqueles rabos de peixe, sei lá, aqueles rabos estavam matando a beleza das moças. Mas após dez minutos sendo cortejado por três delas, nem aí mais, nem liguei para esse detalhe, abracei uma que cheirava a camarão. Beijei a boca de uma com cabelos negros e longos, essa tinha cheiro de mulher mesmo, hum. Quando a convidei para um mergulho na praia, fui beliscado por alguma sereia em meus colhões. Acordei assustado. Era a porra do poeta lusitano avisando-me que enfim estávamos em Alundiá.
Descemos numa plataforma vazia. Parecia mais fim de linha. Mas que nada, o trem seguiria sua viagem para mais distante ainda, para onde? Não sei. Então boa viagem, amiguinho, boa viagem!
Na praça principal não havia táxi. O jeito foi andar dois quarteirões carregando a própria bagagem até chegarmos ao monastério de Chim- Né- Ló. Quando finalmente chegamos, ouvimos uma péssima notícia: o monastério estava lotado de chilenos e argentinos. Aí perguntei ao poeta lusitano:
- Gajo... Estou exausto, desisto, vou dormir por aqui mesmo!
- Calma Gigio, vamos esperar o monge-chefe nos dizer onde há vagas para nós dois!
- Porra cara, aí é sacanagem sua!
- Calma, bicho!
Duas horas depois, apareceu um monge, carequinha e sorridente, informou em fluente Inglês que, do outro lado da cidade, havia o monastério de Kim-Da-Furo, com várias vagas disponíveis. Lá fomos nós dois, eu me arrastando, com fome e sede... Querendo apenas um canto para me jogar e dormir por três dias seguidos. Quando chegamos, fomos recebidos por um grupo de portugueses. Todos pareciam emaconhados. Agradecemos a fraterna acolhida e informamos nosso extremo cansaço. Compreenderam e mostraram nossos quartos. Foi só me estender na cama e dormir. Apaguei com aquele friozinho da noite.
Quando penso que teria novamente mais um sonho erótico e uma longa manhã de repouso... Às seis da manhã, ouço alguém badalando freneticamente um sino pelos corredores. Porra, deu vontade de abrir a porta e esbofetear o filho da puta. Mas fui cutucado pelo poeta lusitano. Ele estava me falando baixinho:
- Gigio, temos de acordar, pois daqui a poucos minutos, teremos as orações matinais! E é obrigatório participar!
- Ah cara, tu tá de sacanagem, né?
- Não bicho, eles irão ler para nós os regulamentos de permanência aqui dentro!
- Quer dizer que você me trouxe para um quartel chinês, é isso?!
- Calma cara... É só esse dia! Amanhã já começam os cursos!
- Tu não me pegas de novo para esparro!
- Bora logo, levante dessa cama e vá se assear!
De repente, estávamos todos reunidos num amplo pátio limpinho. Estávamos realizando exercícios de respiração, controle da ansiedade, foco, percepção visual e reflexos motores do corpo em equilíbrio. Após esses exercícios, fomos tomar banho numa cachoeira incrivelmente linda em suas águas quentes e tranquilas. Até a queda d’água era silenciosa, um mistério. Depois fomos tomar o café da manhã. Nada de café preto, nada de pão, nada de manteiga, nada de ovos com bacon, nada de bolo de milho, nada de mel, nada vezes nada, de nada vezes o resultado de porra nenhuma. O alimento era apenas a fruição do ar! Pela primeira vez fomos induzidos a crer que o verdadeiro alimento, tanto para o corpo, como para a alma, podia ser a matéria etérea ao nosso redor. Sai com a pança cheia de bons ventos macios e deliciosos.
Distribuíram um livreto bilíngue. Para nós o livreto veio em Castelhano e Francês. Sorte a minha que entendia a língua de Cervantes. Deveríamos ficar em nossos quartos, lendo tal obra. A noite entrando pela madrugada seria reservada para as explicações dos monges mais veteranos. Li em poucos minutos a obra reveladora. Uma mistureba alucinógena de budismo com cristianismo. Foi o que eu entendi, lendo suas pálidas páginas. Falei tudo o que pensava ao poeta lusitano. Ele me aconselhou a não falar nada nas reuniões. Trato feito.
Quando finalmente os cursos começaram, separaram homens e mulheres. Até aí, nenhuma novidade em seitas como aquela. Fazem isso por uma razão até simplória. Na cabeça preconceituosa deles, as mulheres se apaixonam muito rápido. E como ali as ideias circulavam com mais intensidade, bem provável o surgimento de algum poeta fracassado nas Letras, mas muito bom de lábia e cama. Daí por motivos de segurança, esse apartheid. Tudo bem, era a regra por lá.
No segundo mês do curso, de colhão cheio e já apresentando total crise de abstinência alcoólica, decidi revirar a mala do poeta lusitano, queria achar as garrafinhas de uísque que o bandido havia escondido. Finalmente encontrei meu valioso prêmio. As garrafinhas estavam dentro de uma falsa garrafa térmica em cima do armário. Imediatamente as guardei em local seguro dos olhos alheios. Mal havia completado tal operação, entra de chofre no quarto o poeta lusitano, quando me viu, ficou desconfiado, dizendo-me entre os dentes:
- Gigio, que fazes aqui nesse horário? Você não deveria estar no curso?
- Transfiro o teor dessa pergunta para você também!
- Bem, esqueci uns papéis e vim apanhá-los! E você?
- Pelo mesmo motivo estou aqui, mas já achei os meus!
E mostrei-lhe a maçaroca de papel avulso. Ele ainda assim ficou desconfiado, mas logo saiu do quarto. Já em minha companhia e no decorrer dos nossos passos apressados, afirmou que no sábado haveria o encerramento das atividades do curso de levitação, o mestre dos mestres estaria em pessoa em nosso monastério. Segundo ele, esse mestre era velhíssimo, sabia tudo de Astronomia, de Astrologia, de Engenharia Civil, de Engenharia Naval, de Direito, de Medicina, de Literatura, de Química, de Física, de Geografia, de História, de Magia branca e negra, de Alquimia, de Farmácia e praticamente de todos os animais que habitam ou já habitaram a face da Terra. Fiquei espantado com tal afirmação. Como poderia ser isso possível? O poeta lusitano me respondeu: “aguarde o sábado!”.
Quando o sábado chegou, o poeta lusitano abandonou o covil. Fiquei sozinho no quarto. Estava escrevendo uns contos bem malucos sobre o Oriente. De vez em quando eu dava uma beiçada no delicioso uísque doze anos. Isso foi me empolgando. Quando finalizei a primeira obra, vi cinco garrafinhas secas ao meu lado. Ainda restavam mais cinco, resolvi então partir para a poesia. Que versos mais malucos eu escrevi, sempre bebericando o oleoso uísque escocês. Quando finalizei vinte poemas, havia secado as dez garrafinhas de uísque. Que imensa tristeza se alojou em meu coração. Quando me levantei, senti uma leve tontura, agora sim, eu estava no ponto! Bateram levemente em minha porta, quando abri, era a porra do poeta lusitano, parecia uma galinha choca, manifestava tremores e suores, o poeta lusitano estava visivelmente excitado com a presença física do mestre dos mestres. E o senhor Dao Xim não suportava atrasados. Ao me puxar para fora do quarto, sentiu o cheiro do meu bafo! E obviamente reclamou:
- Porra Gigio, você aproveitou a minha ausência para beber álcool?
- Foi, e daí? Qual é a tua?
- Por favor, não abra a boca lá no auditório! Se flagrarem você alcoolizado aqui dentro, tchau para você e eu nos próximos anos!
- Não se preocupe, não vou falar porra nenhuma lá!
- Mas antes, deixa eu te passar perfume, você está fedendo que nem um gambá!
- Passa na minha piroca que eu deixo... Hahahahaha!
- Porra Gigio, que papelão!
E saímos nós dois daquele quarto, lado a lado, sem dar nenhuma bandeira ou pinta de alguém alcoolizado. Quando entramos no auditório, já estavam nos esperando. Aí o cara falou muita coisa lá. Que nós estaríamos diante de um quase deus. Duas horas depois desse imenso falatório, o mestre Dao Xim entrou lentamente, suas vestes pareciam feitas em fios de ouro, mas o que mais me chamou a atenção mesmo foi o tamanho pavoroso de sua cabeça. Ela, a cabeça do mestre, tinha o tamanho de pelo menos quatro cabeças humanas juntas e emboladas. Seu corpo franzino mal conseguia equilibrar aquela imensa cabeçorra fincada entre os seus ombros. Minha opinião era a seguinte, aquele cara sentado ali na nossa frente, era na verdade um ET. Ao comentar isso com o poeta lusitano, disse-lhe:
- Cara, é somente eu que estou vendo isso?
- Do que você está falando Gigio?
- A cabeçorra do cara... Ou ele está com um baita tumor maligno ali dentro, ou esse cara engoliu acidentalmente uma bola de basquete, que ao invés de descer para o estômago, acabou subindo para a sua cabeça! Não é possível!
- Porra Gigio, te concentra na palavra!
- Mas como? Olhe o tamanho daquele cabeção!
- Gigio, acho melhor você parar, já estão percebendo teu pileque!
- Égua! Posso fotografar essa cabeçorra?
- De maneira alguma, isso é proibido aqui!
- Ué? Vão acabar dizendo que eu estava viajando pesado! Imagine eu dizendo isso em Belém? Não irão acreditar que exista na face da Terra um homem com essa cabeça quatro vezes o tamanho de uma normal.
- Gigio, você está bêbado! Cale a boca!
- Ei cara, eu estou bêbado sim, mas é de uísque... Já você, está bêbado de fanatismo! O homem que sabe tudo é monstruoso! Olhe para ele, ele está na tua frente! Os monstros todos estão sempre muito doentes... É nosso dever dizer isso de peito aberto e alma lavada: vocês monstros, vocês todos espalham diversas doenças pelo planeta!
Escutaram isso. Fui imediatamente retirado do auditório e levado às pressas para o meu quarto. Ao acordar do pileque, o poeta lusitano me informou que a Pandemia do Covid- 19 havia se alastrado com uma rapidez selvagem pelos continentes. A viagem de volta só ocorreria no mês seguinte. E nesse ínterim, tivemos de sair de Alundiá por motivos óbvios. E foi um drama. Passamos a mesma e tétrica viagem por lugares ainda mais estranhos. Ficamos praticamente mais três semanas ilhados numa republiqueta qualquer. Por que as pessoas gastam tanto dinheiro ao viajar para locais onde habitam esse e outros monstros?
Quando finalmente retornamos ao Brasil, a Pandemia do Covid-19 havia desacelerado um pouco sua voracidade. Notei que os mundos estavam todos misturados. A sensação era de que todos falavam o mesmo idioma: Português... Mas a gente só conseguia entender tudo à nossa volta quando a gente brigava e odiava. Alundiá era aqui e também era lá. Vida e morte sempre souberam dialogar. Eis porque nunca entendemos muito bem o que significa a expressão: amor ao próximo. Após a Pandemia do Covid- 19, frio e calor se aproximaram amistosamente da frieza por razões extremamente políticas. E desse jeito, Alundiá passou a ser o nome do bairro vizinho... Elegante, fino e cultuado.
Gigio Ferreira nasceu no dia 22 de junho de 1967, em Belém do Pará. Cursou Letras. Sua estreia se deu com a publicação da dramaturgia infantojuvenil, O gringo da Matinta (2014), em parceria com a escritora Miriam Daher, pela Editora Giostri-SP. Com exceção do livro O Palhaço de Arame Farpado (2016), poesia, pela Editora Penalux, as suas oito obras publicadas, foram pela Editora Giostri. Atualmente possui dezoito livros inéditos aguardando publicação.


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