“Andar com Vicente em Andara” – Paulo Nunes
“Andar com Vicente em Andara” – Paulo Nunes[1]
Tenho pressa de
relatar o que não sei.
Por isso narro logo o
que sei, sem escolher as palavras.
Quero chegar naqueles
trechos mal iluminados onde a intenção se perde e uma voz passa em meu ouvido
com cascos selvagens... (V.C)
Juro que pela primeira vez tive vontade de manter um blogue sobre literatura e essa coisa toda que ela nos estimula e provoca. Explico-me: é que nesses dias que queimadas e fuligem nos céus de Belém, eu vivi minutos mágicos, fruto de um encontro marcante. Sim, a literatura é um ímã e reitera as aproximações que o ofício de professor – leitor contumaz e “viciado” – proporciona.
Que encontro? Com Vicente Cecim, o “Vicente da AmazOonia” (a palavra como registrada na capa de seu mais novo livro). Vicente me recebeu na sala de seu apartamento; bom saber que somos vizinhos na Pedreira: do samba, do amor (e da literatura). Em verdade, eu nem ia entrar no apartamento do criador de Andará, afinal a pandemia pede recato, “cuidados e caldo de galinha...”, mas diante da insistência dele, fui posto diante da estante de sua sala, quando ele disse: "Meu labirinto, uma parte dele. Desculpa, mas o apartamento estava sendo pintado, os operários me baratinaram, trocaram tudo de lugar, nem sei direito onde estão meus livros; vai demorar pra desorganizar de novo, desorganizar é o meu jeito de me achar aqui dentro".
Vicente Cecim puxou a cadeira, de máscaras e guardando ainda a distância regulamentar, apresentou-me o novo objeto mágico e disse-me. "Tira a placenta (o livro-açu estava envolto numa proteção plástica), ele agora é teu, e o dono tira o véu deste ser que vai ganhar outra vida…". Eu estacionei meus olhos na capa, de pronto, mirei seus cabelos de algodão, um rosto longilíneo ostentava uma máscara que deixava de fora um tico de sua barba branca. A máscara podia ate ser maior, mas nunca estaria à altura do poeta que criou a noite mágica do Manifesto Curau. Máscara é personae, muito apropriado então, para além dos tempos de pandemia, neste brasil (oh! desculpem, grafei o país com B minúsculo) estranho, proto fascista, ao qual Cecim resiste heroica e bravamente, através de sua militância e, sobretudo, de sua escrita, irrequieta que nos provoca um comichão…
O autor de Andara levou 5 minutos para terminar o autógrafo no “meu livro”. Finda a assinatura, ele falou de seus pai, mãe, irmão que era repórter esportivo, etc. Disse que não torcia pra nenhum time, tentou gostar de futebol (o pai fora um grande desportista amador) mas sua experiência nos gramados encerrou com os 2 dedões do pé fraturados. O futebol, afinal, perdeu um atleta, a literatura ganhou um operário alucinado da palavra, reinventor de dicionários e metáforas.
Vicente folheou o livro, mexeu, parou, explicou e, num dado momento, estacionou na foto da mãe, a escritora santarena Yara Cecim; dela ele tratou com entusiasmo, e disse que suas habilidades com a palavra-voz tinha muito a ver com a formação materna: "a escrita de Andara, é um bocado do que ela plantou em mim, em verdade o que vês aí, não é letra não, é voz…” Na verdade, se isto fosse possível ser dito, a letra neste livro é um cadafalso, um simulacro do que seria o registro de narrativas fragmentadas e poemas criados para ser ditos ao pé do ouvido. E voltou à Yara: “minha mãe me chamava o Rosa Branca".
Confessei a ele que minha dificuldade e ao mesmo tempo fascínio com a obra dele. Obra que conhecera lá no antigo Centro de Letras da UFPA. Eu lera seus escritos na página Contexto, de A Província do Pará, uns poemas impactantes. Eles foram recortados com tesoura e grudados com goma arábica em papel jornal, que eu trouxera das sobras de meu ofício como gráfico, sob a orientação do craque santareno Genildo Mota, lá na Mitograph, de Carlos Rocque e Franklin Benjamin, onde trabalhei um ano, para depois decidir que minha praia era mesmo sala de aula. Meu pai me bancou e eu virei professor de Letras, orientado por Josse Fares, com quem, na época, eu tinha apenas uma relação de discípulo e mestra.
Aluno de Letras, diante dos poemas de Contexto, eu esbocei um ensaio sobre o que dispunha da poesia de Cecim e apresentei a Elanir Gomes da Silva, a Lana, professora de Literatura Paraense da UFPA. Desde então, percebi a literatura de Cecim quase que como a esfinge de Édipo Rei, na base do 'decifra-me ou te devoro'. E isso não se modificou até hoje, o escritor é firmemente esfíngico para mim. O eu mudou foi a minha capacidade de adentrar no texto de Andara com mais firmeza, adentrar nele e sair dele com alguma desenvoltura, mas não sem ficar atônito ou fascinado.
Cecim, em fala mansa e compassada, vez em quando olhava pras paredes, como se invejasse a aranha que fazia teia sobre a parte superior da estante de livros. Foi quando, depois de um breve silêncio, ele me contou sobre a visita que Borges fez a ele, na sua casa na vila Farah, em São Brás, Belém. Borges?, eu perguntei. Sim, o Jorge... mas isto, de Borges e Cecins é conversa para outra história…
O que vale é ressaltar
que aquela conversa literária alimentou meu dia, meu mês. Dessa e de outras
experiências e encontros com Vicente (muitos deles na Fox Livraria Café) eu saí
mais humanizado. E o que posso resumidamente dizer é que é muito bom ser
contemporâneo de Vicente Franz Cecim. Agora é mergulhar fundo em seus “livros
visíveis de Andara”, definitivo mergulho num definitivo livro. Fiquei, estou
marcado. Avoé, aVe!
Belém, setembro de 2020.




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É e sempre será aula inconclusa a visita a um literato de tamanha grandeza. Porém, o pouco que absorvemos pode salvar nosso dia, ou mês, como aconteceu com o nobre professor e escritor Paulo Nunes.
ResponderExcluirAvoê...
Agradeco este espaço em que minha crônica ganhou morada, momento em que vi pousar a ave de Cecim nos jardins de Andaaa. Assim, aVe
ResponderExcluirUau, li num fôlego só! Paulo, és um mestre das palavras, ficamos miúdos diante de ti, diante de tua generosidade e engenhosidade com as palavras. O teu olhar atento sobre Cecim e sua Grande Obra é, sem dúvida, uma chamada de atenção para a literatura produzida na AmazoOnia, melhor ainda, para essa Obra Monumental que é Viagem a Andara, projeto estético forjado em um ciclo de obras jamais visto no século XX. O nosso século recebe um presente: todos os livros de Andara, agora
ResponderExcluirao alcance dos leitores.