O RÉPTIL MELANCÓLICO: NARRAR (E LER) NA CERTEZA DE QUE ‘TODA CONSCIÊNCIA É MISERÁVEL’ – por PAULO NUNES[1]
O RÉPTIL MELANCÓLICO: NARRAR (E LER) NA CERTEZA DE QUE ‘TODA CONSCIÊNCIA É MISERÁVEL’ – por PAULO NUNES[1]
Descubro
que não se pode nunca reler um livro, mas pode-se sempre o reler através de
outros. É o impacto da leitura primeva que resgata o tempo
(...)
...
percebi que o tempo, tal como as dimensões a ele correlatas, não tinham
materialidade das outras coisas, e as múltiplas imagens que se passavam à minha
frente, repentinamente, congelaram-se...
(FH-Co)
I
- Pretextos
O tempo, “senhor tão
bonito...”, abstrato e intocável, é provavelmente o maior desafio humano.
Graças à sua volatilidade, o ser humano aprendeu a narrar como modo de dar ao
tempo uma forma humanizada e humanizante. Desde as histórias contadas ao pé das
fogueiras, em priscas eras, até os tempos modernos, com o isolamento propiciado
pela letra/escrita, muita coisa modificou-se. A literatura romanesca é, a meu
ver, uma das faces mais sofisticadas do narrar. Disto isto, pensemos um pouco
na literatura contemporânea.
A literatura
contemporânea é vasta e por vezes tão estranha quanto um cronópio juliocortaziano.
Falar desta expressão de literatura é definhar um pouco e arriscar-se aos perigos
da língua literária, armadilhas que podem levar o leitor ao cadafalso. Tal qual
a falácia da “leitura como resgate”, eu “teimo-me e me insisto”, ora iludido,
ora desiludido. Mas como sou amazônida, brasileiro, professor, enfim, corro o
risco de expor algumas ideias sobre O Réptil Melancólico, de Fábio Horácio-Castro
(FH-Co), editado pela Record, prêmio SESC de Literatura 2021, na categoria
romance. Ante a este livro cometo uma leitura quase arqueológica, dado que o temos
aqui, até que se prove o contrário, são narrativas em abismo, e é assim
que vejo O Réptil..., como uma aniagem verbal que se adequa à escavação
que desvela camadas textuais. Como vaticinou o poeta Max Martins: “escrevo
duro/escrevo escuro/ e neste muro/ o que procuro/furo”. Furo. Procuro. Ou ainda
para contrariar Felipe, personagem de destaque da trama, que, em dado momento, comenta,
sem muita convicção, sobre procedimentos de leitura: “dizia minha mãe que não
há leituras secundárias. Para ela, o sentido é apenas um, e nunca dois...” (p.
55). Em se tratando da interpretação da História e da literatura, aqui praticadas,
podemos ser levados a uma rede de enganos.
Fábio Horácio-Castro é talvez
uma outra face do pesquisador de carreira destacada, professor do PPGCom e NAEA,
dois centros de pesquisa da Universidade Federal do Pará. Se o pesquisador tem
carreira já consolidada, o autor de literatura, apesar de intenso, irrequieto e
maduro, busca seu lugar ao sol, como um equilibrista no “arame do Equador”, como
diria Dalcídio Jurandir, nosso famoso romancista. O que vale lembrar é que a história
da literatura está repleta de exemplos em que escritores trazem para seus
textos, à cata de enriquecê-los, as teorias da Filosofia e das demais ciências humanas
e sociais. Esta estratégia geradora ganha muitos adeptos a partir dos séculos XIX
e XX, mas no XXI ela ganha mais adeptos. Fábio Horácio-Castro, assim, não menosprezará
seu repertório de teorias com a finalidade de enriquecer seu romance; ele
instrui, sempre que possível, seus narradores a fazer bom uso das verdades das ciências,
e, deste modo, não há como desconhecer que sua ficção se alimenta de alguns pensamentos
em voga no mundo das ciências.
II
– Os labirintos, a lembrar Jorge Luís Borges
Deixemos os prólogos e
passemos àquilo que interessa, o texto de O Réptil..., como doravante passarei
a abreviar, é marcado pela hibridação de formas de enunciação; assim é que esta
narrativa alimenta-se da provocação criativa advinda do dialogismo bakthiniano;
a trama forja uma revisão da história colonial portuguesa (como aponta um
excerto “a história é um besouro incômodo”, p. 163) quando aproxima, por
exemplo, as rebeliões e guerras ocorridas no Pará às lutas de independência das
antigas colônias portuguesas em África. Afinal, é bom relembrar, estávamos
todos – os dois Brasis – ligados ao plano expansionista português, com seu
legado de “anexação colonial” (desde os tempos do Grão-Pará, o que foi
intensificado, segundo aqui se lê, com o golpe de 1964). Eis um dos legados
deste livro, a proposição de revisão da História pelos filtros da ficção.
Entretanto é da Física
que vem o mais crucial dos conceitos que se consubstancia em estratégia de
escrita ficcional; algo que justifica o que se lerá nas 382 páginas do livro. Estou
a falar da paralaxe (vide o capítulo 3, p. 73, uma quase lição de teoria
da escrita em que tal procedimento ótico é tratado), que pode ser entendida
como uma estratégia fundamental para se dominar o ponto de observação e distanciamento
que um mirone tem do objeto observado. Fábio Horácio-Castro, como hábil autor
empírico, instruiu seus narradores a usar este “procedimento ótico” em seu contar,
contar-se.
O modo como esta
narrativa foi urdida possibilita pensarmos numa retroalimentação temática difusa
e múltipla, que, no entanto, não se distende, graças a um enredo tenso. A paralaxe,
penso eu, é estratégia que auxilia na consolidação daquilo que Mikhail Bakthin
denominou de dialogismo, estratagema de que o romance lança mão. Em suma: o livro
de Fábio H-C configura-se como um repositório de entrançados narrativos, são
narrativas numa só narrativa: “um livro feito de alguns livros”, como aliás
justificou o autor em conversa com seus leitores, no dia de lançamento da obra.
A formatação “livro de livros” é algo que os leitores podem constatar com
alguma facilidade. Ao largo e ao final, podemos dizer que O Réptil... é uma
obra em aberto, que há de “fechar-se” ao gosto de cada um que trará para sua
leitura seus repertórios pessoais.
III
– Temáticas que nos são caras
Discorri a respeito da
complexidade da literatura contemporânea, o que apontará para a dificuldade de
usar um métron, uma “régua de medir”, em um texto complexo, algo que
está tão próximo de nossos olhos. Um dos traços da figuração da contemporaneidade
se evidencia através de um sucedâneo de recursos de enunciação que dão
consistência ao enunciado literário, mesmo quando, paradoxalmente, uma
personagem a nega. N’O Réptil... saltam aos olhos as muitas temáticas presentes
no enredo da narrativa. Mas aquilo que provavelmente mais chamará a atenção dos
leitores resume-se em três apelos temáticos, a saber: 1) as denúncias das arbitrariedades
cometidas pelas ditaduras latino-americanas em nosso passado recente; 2) a migração
e o exílio, temas decorrentes do primeiro eixo; e 3) o problema da
identidade, que, consequência das demais, é o que mobiliza personagens e dá
força dramática ao enredo; destaca-se aqui Felipe, exilado em Paris, que,
curioso de reavivar seu passado, e a fim de clarear suas origens em Santa Maria
Ighênia, Norte do Brasil, busca de seu graal pessoal e familiar. Na
cidade, Felipe conhece seu avô paterno, João, o proprietário da casa do Anfão,
localizada na Cidade Velha de “cidadela” de Santa Maria, vejamos o trecho:
“Chama-se Anfão esta casa (...) é uma casa velha (...) As paredes que tem
acumulam umidade, raios rompem-lhe os muros (...) o poço, no quintal, tem certo
ar de eternidade” (p. 210). Santa Maria Ighênia, pelos rastros que podemos
decodificar, é uma representação ficcional de Belém do Pará, o que propiciará a
conformação de outra fisionomia da cidade, uma espécie de “geografia errada”
(p. 306), necessária e de certo modo desconfortável.
A casa, como sabemos, é, desde
sempre, um dos mais caros temas da literatura. Em tempos pretéritos, a casa era
representada de modo romântico. Mas, diferentemente de como a vê Gaston
Bachelard, por exemplo, a casa como um símbolo de proteção e representação
do útero materno, a casa na trama de Fábio H-C é um antro de
despedaçamento, conformação das distopias, uma síntese da dispersa e
fragmentada família encabeçada por seu João. De algum modo, a casa do Anfão,
cercada de água – fonte e poço a delimitá-la –, é uma metonímia de uma cidade nada
lírica e muito menos idealizada. Neste
sentido, sem muito esforço, a Anfão dessa família pequeno-burguesa de Santa
Maria é desfibrada, no que Fábio H-C segue uma tradição literária explorada por
Machado de Assis (Matacavalos), Dalcídio Jurandir (Gentil, 160) e Carlos
Drummond de Andrade (a de Itabira). Em todas elas, a edificação burguesa, na
linhagem do “lar, doce lar” é implodida.
Abro um parágrafo aqui
para dizer de uma outra temática que a mim salta aos olhos é a representação da
cidade, a partir de uma perspectiva da urbe moderna, melancólica e excludente, na
qual Santa Maria se erigirá transtornada, hipócrita e caótica. Neste sentido, esta
trama pede a conivência dialogada com autores de referência (de novo os
ficcionistas teóricos entram em campo) como Charles Baudelaire, Walter Benjamin
e Willi Bolle, conforme se pode ler na página 306. Isto dito, vale lembrar umas
palavras sobre a Anfão: “toda casa velha tem segredos...” (p. 192). A do Anfão
é síntese de uma sociedade, fisionomia onde vivem mitos e “homens coloniais”, daí
porque vemos pulsar no texto o sarcasmo, quando os narradores e/ou personagens
são levados, em geral, mais a desconfiar que confiar, mais a duvidar do que
concordar. A partir da casa do Anfão se pode ler uma nova geopoética da cidade
equatorial, em que novos olhares são reivindicados para longe do lirismo
exótico.
IV
– Personae/personagens
Das questões mais
complexas, no entanto, está a multiplicidade de fixação de personagens de uma
mesma família, um “saco de gatos”, no qual seres são quase que totalmente estranhos
entre si. Desmantela-se, de novo, o ideal da família unida e cordata. Tanto tipos
quanto personagens-narradores merecem um estudo à parte, o que não me proponho
a fazer aqui.
Nos vários livros que
compõem O Réptil... existe a possibilidade de personagens serem desmascarados
em seus roteiros edificantes de vida. E se isto ocorre é graças às estratégias
irônicas e lúdicas de linguagem imputadas aos narradores e aos personagens,
industriados que são, e bem!, pelo autor empírico. A personagem, no entanto,
que mais que tocou foi Malaquias, o mordomo de hábitos lusitanos, que, desde a
meninice, fixou-se na casa do Anfão como criado, menino de recados, e que, na
medida em que a narrativa se presentifica encontra-se já com 98 anos. Malaquias
é, deste modo, aquele que testemunha todas as fases da casa, do esplendor (?) à
decadência e ao abandono. Ironicamente, nas mãos de Malaquias está boa parte da
memória da família, memória que ele se esforça para repassar adiante, mesmo que
de modo precário, às novas gerações, sobretudo ao curioso Felipe. Malaquias, de
todo modo, é a própria melancolia encarnada, agregado num Brasil que é a pátria de absurdos.
V
– Um livro de livros?
A estrutura de vários livros
contidos num único livro (“um livro de livros”), reitera a ideia d’O Réptil,
como já adiantei, com a estrutura romanesca de narrativas em abismo. Pode-se especular
que tais narrativas são frutos de composição que possibilita escavações a fim
de desvendar-se, na leitura, a técnica de bricolagem de um livro labiríntico,
no qual o leitor é convocado ao jogo como um apostador que se insere numa
jornada desafiante. Há que se pagar para ver.
Em uma espécie de Pentateuco
às avessas (aqui seria melhor grafar a palavra com P minúsculo), O Réptil...
abriga cinco livros que são interdependentes, mas não afastados da cultura
hebraico-cristã presente na formação das personagens. Os cinco livros podem ser
lidos em separado, mas fazem melhor sentido se forem realinhados, juntados como
peças de um quebra cabeça, em que cada personagem é visto de modo singular e
fundamental para a compreensão geral do enredo.
Vejam que evitei aqui
tratar de modo mais acurado tanto do título do livro quanto dos narradores que
aqui se acomodam. É porque, em verdade, estamos diante de duas instâncias muito
complexas que merecem um estudo aprofundado – título e narradores, o que é improvável
numa resenha como esta, que tem limite de espaço de publicação. Digo apenas que
os narradores d’O Réptil... são narra+a+dores, processo de
composição narrativa por justaposição estilhaçada. E o tal réptil que está no título,
pode, em certas circunstâncias, caracterizar-se como uma chave de leitura
dentre tantas outras possíveis. O réptil é um animal que sofre metamorfoses, mimeses
e assim adequa-se a ambientes hostis e adversos. Nosso réptil, além de ter
audição apurada, esconde-se, entre matos, rachaduras de paredes, pés de muro,
sob as pedras e rochedos.
Enfim, O Réptil
Melancólico é um livro de jogos linguagens, metanarrativa desconcertante. Não
é à toa que ele foi distinguido com o prêmio SESC. O Réptil... é também
um livro de muitas vozes que dialogam, intertextualidade e, com grandes autores como
Ecléa Bosi, Stuart Hall, James Joyce, Haroldo Maranhão, Augusto Roa Bastos,
Mário de Andrade, Lindanor Celina, Franz Kafka, enfim, um sem número de autores,
que lhe serve de adubo.
Se tivesse eu o condão de
lhes dar uma “chave de leitura” eu aconselharia ler detidamente a ideia de
lusografia, na linha da teoria de Jean-Michel Massa. A lusografia se contrapõe
ao princípio da lusofonia, teoria ainda colonialista quando hierarquiza os
países falantes da língua portuguesa, subjugando-os aos interesses geopolíticos
de Portugal. A lusografia é libertária e anticolonialista e, neste sentido, ela
aproxima-se às críticas das diversas colonialidades. Através da lusografia, O
Réptil... (como aliás explicita o capitulo I, do livro IV, denominado “A
condição colonial”) abre-se à possibilidade de entendimento crítico da ditadura
de Salazar, do regime militar brasileiro, bem como possibilita se perceber com
maior clareza o problema da anexação colonial portuguesa, que constitui, a meu
ver, um dos “pulos do gato” do livro.
VI
– O fim?
Enfim, O Réptil
Melancólico nos recoloca, assim como a poesia de Paes Loureiro, Max
Martins, Antônio Moura e a prosa de Isadora Salazar, Monique Malcher e Edyr
Augusto Proença, para citar penas uns nomes, no olho do furacão da literatura
brasileira contemporânea, literatura da melhor qualidade. Quem o ler, verá!
[1]
Professor titular da
Universidade da Amazônia; Paulo é curador do acervo Dalcídio Jurandir, sob a
guarda do Fórum Landi e projeto Moronguetá, através de convênio FAU/UFPA e
Unama. Paulo também é consultor da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir; autor de Traço-Oco
(Penalux, 2018), entre outros.
Variações: revista de literatura contemporânea
Comentários
Postar um comentário