Resenha do "Os desertos" de Marcos Samuel Costa - Paulo Nunes

 

"Os desertos"
Autor: Marcos Samuel Costa. Editora Folheando.
Páginas: 126. Preço: R$ 38,00.

 

    Creio que vi nascer este poeta, timidamente, discreto, de movimentos e palavras econômicos, lá nos idos dos anos 2.000, lá na Fox Livraria e Café, saudosa; e vejo, quase espantado, o seu salto felino, de um domador de linguagens, no qual ele se engendrou, certamente, à base de reiteradas leituras e exercícios cotidianos com o verbo. Marcos, de nome bíblico, poeta de outro evangelho, agora recosido, na experiência do corpo, na acepção árabe do ‘corpo da letra’, potência fenotextual e pretextual; eis que redescobrir Roland Barthes num fissurado texto não é mor novidade, mas um gesto revigorado e para leitores e leitoras, revigorante. Sim, aqui a ideia de Barthes é ponto de (concepção e) partida, mas não é ponto de chegada, visto que, a nossos olhos, os que leem estes poemas, muitas novidades se prenunciam em versos poemas e silêncios. Sim, o silêncio – canalizado na página em branco, margens de porvir, é uma rasura do texto que deve ser levada em conta.

Eu poderia resumir a antologia “Os desertos”, dizendo-a como marco exemplar de uma literatura de expressão homoafetiva (que de fato é), mas resumir-se a isto é conceder ao óbvio, embora fazê-lo possa deflagrar u’a medida rija, canônica, dessas que aceita tão somente o padrão/padrão falocêntrico. Bem, sim, som: os desertos de Marcos têm esse condão: o enfrentamento. E é deste enfrentamento com o canônico de que quero tratar.

O poeta Marcos Samuel Costa conhece o livro sagrado e instruiu suas vozes poéticas, máscaras de linguagem, a reescrevê-lo. Pouco nos interessa aqui o Antigo Testamento, muito ortodoxo de atitudes e ideias, mas o interesse-alvorecer está alinhado ao Novo Testamento, visto que a tradição, desde os tempos dos antigos romanos em Israel é preciso ser apurada no (re)aprendizado do amor como os ensinamentos do Cristo, e por isto o livro traz um Pedro e um Paulo muito singulares, di-versos (e recondicionados) dos matriciais personagens bíblicos, como aponta o poema a seguir, reintronizador de sentidos, como em “Apóstolo da fé”:

Quando Pedro era pescador
          lançava a rede
 
redes barcos
magma caos:  brancas linhas
  
                     lírios escarlates
cresciam entre seus pulsos
 
todo o medo submerso
nas densas areias
polvo gigante
 
trisca
 
carnais da primavera Medusa é um homoafetivo
antes do
                        desejo
 

 

Quem é esta pedra sobre a qual Jesus erigirá sua organização primeva? Um homem que pesca peixes e se angustia com seu estado d’alma, revolto como o mar; do rijo Pedro das escrituras, temos cá, diferentemente, um Pedro que vê “lírios escarlates/[que crescem] entre seus pulsos/ todo o medo submerso /nas densas areias...” Marcos redesenha perfis ou faz submergir um homem que pela bruteza escondia sua sexualidade profunda, segundo este texto poético sugere.

Mas nem só da cultura hebraico cristã vive este livro que, vez ou outra, traz na sua algibeira, o aprendizado com os poetas orientais, sobretudo a dos japoneses, numa singeleza contemplativa e sofisticada como a do poema a seguir, curto e de movimentos necessários na direção de Gaia:

“Floração”
 
Os galhos dos jambeiros
invadem a casa
manto florido
o rosado
das lágrimas
ao seu pé.

 

Há ainda a celebração metalinguística, traço marcante da modernidade, amplificado intersemioticamente no contemporâneo, que nos faz, os humanos, uma espécie de gentes-palavra, como no poema “Ritmado sobre tristezas”:

 

“não é de devassidão
que fala o poema
 
o poema não fala
a fala é sangue
 
mergulho no seco
na voz
voz           voz
 
sob a terra
ao beijo
beijo                beijo”,

 

Enxergo nestes versos, guardando-se as devidas marcas temporais e seus desdobramentos, uma recomposição do clássico de Olavo Bilac: “...e as palavras de amor que morrem na garganta?...” É fato que aqui, de novo, a tensão se dá com a necessidade de transposição dos valores heteronormativos – “não é devassidão/ que fala o poema” -, o mergulho no seco da voz. Ora, voz, segundo a etimologia mitopoética que se pode depreender na linha de um Paul Zumthor, é ‘pneuma’, ‘hálito e sopro sagrado’, origem de todo o sistema de comunicação poética das sociedades humanas, sociedades que fazem gerar e gerir poetas como o Marcos Samuel. O local e o global, desta feita, estão demarcados no livro, com discrição e força de engendramento criativo.

Marcos Samuel é, de certo modo (e também), um evangelista apócrifo – ele nos traz uma boa nova –; escriba desses que espalha a desconfiança diante do sacrossanto, do canônico; senão, vejamos, o poema “Paulo sofre”, em que a marca da trindade, ou seria melhor dizermos triângulo?, se faz novamente como fantasmagoria de uma desnormatividade quase pagã, que se assumida, acaba por abalroar a coluna de sustento, o pilar, a pedra-Pedro, que sustenta a casa-drama, trama do poema:

 

“A arquitetura encontrada na cozinha da casa
lembra o movimento do corpo de Caio e o seu deserto
chuva que corta a coluna principal do sustento
mesa de pernas tortas sem brilho, sem mármore
sem a tinta, profundidade teias de aranha nas paredes e teto
telhas de um passado tão distante Pedro sofre”.
 

Ora, de repente o leitor/a leitora ausenta-se de seu papel de fruidor/a para ser uma espécie de arqueólogo subversor, não só dos rolos do cânon, mas do modelo ocidental de comportamento moral e afetivo. O resultado pode incomodar os conservadores, mas entendo-o como lúdico e lúcido, ao mesmo tempo... E não é para isto que serve a arte, para promover abalos e remover escombros? A remoção, estruturada, lembre-se, vem pelas palavras, que por vezes se retropicalizam com a encenação das ações sagradas no espaço brasílico, como em “Jambeiro”:

 

“o sustendo de tudo
são como galhos de jambeiro
podre e fraco
 
pau que nunca vira
madeira,
pau que nunca fode”.

 

Natureza e humanidade não se separam, mas superam-se, através das marcas amplas que o amor possibilita: Eros é o padroeiro da redenção sublevada, que mesmo frustrada reorganiza os desejos.

O poeta ludibria o tempo e faz dele gato e sapato, manipula-o no sentido quase platônico de moldar através da imaginação libertadora, senão vejamos:

 

“O corpo do homem
afogado passeia
na antiga fotografia
Pedro olha atento
 
que se
unem até formar
um filme em que
 
girafas gatos
cachorros
e algozes bailarinas
 
professores drogados 
se comprazem
na glória do
amanhecer
 
e sentem amor”

 

Pedro vê um outro que se afogou (“homem que se afogou no amor de outro homem”), já fotografado/filmado, o que nos sugere um outro Pedro, repaginado, e vivente dos tempos de agora, que vive na babel, entre professores, bailarinas e drogados, que se comprazem com a luz do dia.

No movimento helicoidal da encenação do novo, temos um poema-síntese que faz desmoronar o moralismo religioso em “Parábola dos dois”

 

“Como a solidão
Paulo se abre para Pedro
para o sexo: gritos de dor
e prazer
suas intimidades
carrega na costa
um tubarão
de prata: que escorre
vertiginosamente pela barriga
após o orgasmo”

 

O exercício de saltimbanco de Marcos Samuel anteviu o quase inegociável namoro, “intimidades carregadas nas costas” de um judeu tosco, fechado em si, feito concha, e um romano convertido, ousado, que de /SAUlo/ vira /PAUlo/ graças à uma iluminação...

Há, no livro todo, escrituras sarcásticas, uma tensão deliberada que se rarefez em cada locus bíblicos Canaã, Sodoma e Gomorra, terras santas, porto da angústia e do pecado – a culpa, salvo engano, é a mais degradante herança judaica que foi levada às últimas consequências pelos cristãos, que miseravelmente se acostumaram com o controle, com a vigilância, com a desfelicidade imposta pelas normas. Assim é que o livro de Marcos Samuel evolui para um “homem novo”; este homem novo, liberto das amarras da fé sufocante aparecerá como uma utopia no fim de “Os desertos”, topos do novo ressemantizado em “Salmos do amor”

 

“cada noite
em que a partida
buscava por ti
 
perto do peito
um cemitério
 
tua voz
acordava meus mortos”

 

A voz, pneuma, hálito sagrado, é a transfiguração do próprio Messias que descortina a alvorada, através da qual o amor estará livre das amarras educastradoras. Sim, a poesia de Marcos Samuel, atravessou a baía do Marajó, aportou em Belém e está pronta para exportar-se para o mundo todo, celebrando, quem sabe um outro poeta piaui-paraense que, noutros tempos, foi tão sutil quanto o seu tempo permitia, Mário Faustino, aqui celebrado, com certa discrição, se junta a outros três que, imitado o oficio alquímico das travessias, carregam as bandeiras na epigrafe: Rosangela Darwich, Orides Fontela e Paul Auster, poetas que entendem profundamente os procedimentos da travessia dos desertos, mas que veem, têm na palavra a fonte, a ponte.

E eis que na geopoética deste “Pará-grande”, o moço corajoso, se desprende das águas e ares marajoaras e, sem sair delas, dá as cartas ao mundo. Viva a poesia transversal e nada celibatária de Marcos Samuel.

 

Paulo Nunes

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