Resenha do "Os desertos" de Marcos Samuel Costa - Paulo Nunes
Creio que vi nascer este
poeta, timidamente, discreto, de movimentos e palavras econômicos, lá nos idos
dos anos 2.000, lá na Fox Livraria e Café, saudosa; e vejo, quase espantado, o
seu salto felino, de um domador de linguagens, no qual ele se engendrou,
certamente, à base de reiteradas leituras e exercícios cotidianos com o verbo.
Marcos, de nome bíblico, poeta de outro evangelho, agora recosido, na
experiência do corpo, na acepção árabe do ‘corpo da letra’, potência
fenotextual e pretextual; eis que redescobrir Roland Barthes num fissurado
texto não é mor novidade, mas um gesto revigorado e para leitores e leitoras,
revigorante. Sim, aqui a ideia de Barthes é ponto de (concepção e) partida, mas
não é ponto de chegada, visto que, a nossos olhos, os que leem estes poemas,
muitas novidades se prenunciam em versos poemas e silêncios. Sim, o silêncio –
canalizado na página em branco, margens de porvir, é uma rasura do texto que
deve ser levada em conta.
Eu poderia resumir a
antologia “Os desertos”, dizendo-a como marco exemplar de uma literatura de
expressão homoafetiva (que de fato é), mas resumir-se a isto é conceder ao
óbvio, embora fazê-lo possa deflagrar u’a medida rija, canônica, dessas que
aceita tão somente o padrão/padrão falocêntrico. Bem, sim, som: os desertos de
Marcos têm esse condão: o enfrentamento. E é deste enfrentamento com o canônico
de que quero tratar.
O poeta Marcos Samuel
Costa conhece o livro sagrado e instruiu suas vozes poéticas, máscaras de
linguagem, a reescrevê-lo. Pouco nos interessa aqui o Antigo Testamento, muito
ortodoxo de atitudes e ideias, mas o interesse-alvorecer está alinhado ao Novo Testamento,
visto que a tradição, desde os tempos dos antigos romanos em Israel é preciso
ser apurada no (re)aprendizado do amor como os ensinamentos do Cristo, e por
isto o livro traz um Pedro e um Paulo muito singulares, di-versos (e
recondicionados) dos matriciais personagens bíblicos, como aponta o poema a
seguir, reintronizador de sentidos, como em “Apóstolo da fé”:
lançava a rede
magma caos: brancas linhas
lírios escarlates
cresciam entre seus pulsos
nas densas areias
polvo gigante
antes do
desejo
Quem é esta pedra sobre a
qual Jesus erigirá sua organização primeva? Um homem que pesca peixes e se
angustia com seu estado d’alma, revolto como o mar; do rijo Pedro das
escrituras, temos cá, diferentemente, um Pedro que vê “lírios escarlates/[que
crescem] entre seus pulsos/ todo o medo submerso /nas densas areias...” Marcos
redesenha perfis ou faz submergir um homem que pela bruteza escondia sua
sexualidade profunda, segundo este texto poético sugere.
Mas nem só da cultura
hebraico cristã vive este livro que, vez ou outra, traz na sua algibeira, o
aprendizado com os poetas orientais, sobretudo a dos japoneses, numa singeleza
contemplativa e sofisticada como a do poema a seguir, curto e de movimentos necessários
na direção de Gaia:
invadem a casa
manto florido
o rosado
das lágrimas
ao seu pé.
Há ainda a celebração
metalinguística, traço marcante da modernidade, amplificado intersemioticamente
no contemporâneo, que nos faz, os humanos, uma espécie de gentes-palavra, como
no poema “Ritmado sobre tristezas”:
que fala o poema
a fala é sangue
na voz
voz voz
ao beijo
beijo beijo”,
Enxergo nestes versos,
guardando-se as devidas marcas temporais e seus desdobramentos, uma
recomposição do clássico de Olavo Bilac: “...e as palavras de amor que morrem
na garganta?...” É fato que aqui, de novo, a tensão se dá com a necessidade de
transposição dos valores heteronormativos – “não é devassidão/ que fala o
poema” -, o mergulho no seco da voz. Ora, voz, segundo a etimologia mitopoética
que se pode depreender na linha de um Paul Zumthor, é ‘pneuma’, ‘hálito e sopro
sagrado’, origem de todo o sistema de comunicação poética das sociedades
humanas, sociedades que fazem gerar e gerir poetas como o Marcos Samuel. O
local e o global, desta feita, estão demarcados no livro, com discrição e força
de engendramento criativo.
Marcos Samuel é, de certo
modo (e também), um evangelista apócrifo – ele nos traz uma boa nova –; escriba
desses que espalha a desconfiança diante do sacrossanto, do canônico; senão,
vejamos, o poema “Paulo sofre”, em que a marca da trindade, ou seria melhor
dizermos triângulo?, se faz novamente como fantasmagoria de uma
desnormatividade quase pagã, que se assumida, acaba por abalroar a coluna de
sustento, o pilar, a pedra-Pedro, que sustenta a casa-drama, trama do poema:
lembra o movimento do corpo de Caio e o seu deserto
chuva que corta a coluna principal do sustento
mesa de pernas tortas sem brilho, sem mármore
sem a tinta, profundidade teias de aranha nas paredes e teto
telhas de um passado tão distante Pedro sofre”.
Ora, de repente o
leitor/a leitora ausenta-se de seu papel de fruidor/a para ser uma espécie de
arqueólogo subversor, não só dos rolos do cânon, mas do modelo ocidental de
comportamento moral e afetivo. O resultado pode incomodar os conservadores, mas
entendo-o como lúdico e lúcido, ao mesmo tempo... E não é para isto que serve a
arte, para promover abalos e remover escombros? A remoção, estruturada,
lembre-se, vem pelas palavras, que por vezes se retropicalizam com a encenação
das ações sagradas no espaço brasílico, como em “Jambeiro”:
são como galhos de jambeiro
podre e fraco
madeira,
pau que nunca fode”.
Natureza e humanidade não
se separam, mas superam-se, através das marcas amplas que o amor possibilita:
Eros é o padroeiro da redenção sublevada, que mesmo frustrada reorganiza os
desejos.
O poeta ludibria o tempo
e faz dele gato e sapato, manipula-o no sentido quase platônico de moldar
através da imaginação libertadora, senão vejamos:
afogado passeia
na antiga fotografia
Pedro olha atento
unem até formar
um filme em que
cachorros
e algozes bailarinas
se comprazem
na glória do
amanhecer
Pedro vê um outro que se
afogou (“homem que se afogou no amor de outro homem”), já fotografado/filmado,
o que nos sugere um outro Pedro, repaginado, e vivente dos tempos de agora, que
vive na babel, entre professores, bailarinas e drogados, que se comprazem com a
luz do dia.
No movimento helicoidal
da encenação do novo, temos um poema-síntese que faz desmoronar o moralismo
religioso em “Parábola dos dois”
Paulo se abre para Pedro
para o sexo: gritos de dor
e prazer
suas intimidades
carrega na costa
um tubarão
de prata: que escorre
vertiginosamente pela barriga
após o orgasmo”
O exercício de
saltimbanco de Marcos Samuel anteviu o quase inegociável namoro, “intimidades
carregadas nas costas” de um judeu tosco, fechado em si, feito concha, e um
romano convertido, ousado, que de /SAUlo/ vira /PAUlo/ graças à uma
iluminação...
Há, no livro todo,
escrituras sarcásticas, uma tensão deliberada que se rarefez em cada locus
bíblicos Canaã, Sodoma e Gomorra, terras santas, porto da angústia e do pecado
– a culpa, salvo engano, é a mais degradante herança judaica que foi levada às
últimas consequências pelos cristãos, que miseravelmente se acostumaram com o
controle, com a vigilância, com a desfelicidade imposta pelas normas. Assim é
que o livro de Marcos Samuel evolui para um “homem novo”; este homem novo,
liberto das amarras da fé sufocante aparecerá como uma utopia no fim de “Os
desertos”, topos do novo ressemantizado em “Salmos do amor”
em que a partida
buscava por ti
um cemitério
acordava meus mortos”
A voz, pneuma, hálito sagrado, é a transfiguração do próprio Messias que descortina a alvorada, através da qual o amor estará livre das amarras educastradoras. Sim, a poesia de Marcos Samuel, atravessou a baía do Marajó, aportou em Belém e está pronta para exportar-se para o mundo todo, celebrando, quem sabe um outro poeta piaui-paraense que, noutros tempos, foi tão sutil quanto o seu tempo permitia, Mário Faustino, aqui celebrado, com certa discrição, se junta a outros três que, imitado o oficio alquímico das travessias, carregam as bandeiras na epigrafe: Rosangela Darwich, Orides Fontela e Paul Auster, poetas que entendem profundamente os procedimentos da travessia dos desertos, mas que veem, têm na palavra a fonte, a ponte.
E eis que na geopoética
deste “Pará-grande”, o moço corajoso, se desprende das águas e ares marajoaras
e, sem sair delas, dá as cartas ao mundo. Viva a poesia transversal e nada
celibatária de Marcos Samuel.
Paulo Nunes
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