Resenha: O cheiro dos homens - por Gutemberg A. D. Guerra
COSTA, Marcos Samuel. O
cheiro dos homens. Belém: Editora IOEPA, 2021.
COSTA, Marcos Samuel. O cheiro dos homens. Belém: Editora IOEPA, 2021.
A literatura tem o poder de nos informar sobre mundos que não conhecemos ou que recebemos e reproduzimos baseados em valores impostos com toda a carga de julgamentos preconceituosos. Ela é libertadora porque pode nos levar a pensar criticamente sobre possibilidades que as grades morais impõem e engessam nossa percepção. Mais do que isso, ela nos incita a experimentar e construir nossos próprios conceitos e percepções, mas precisamos estar atentos a que paradigmas nos regem e que arquétipos utilizamos como medidas para nossas avaliações.
Comecei a ler “O cheiro dos homens”
incomodado por esse título. Mais incomodado ainda fiquei ao identificar a
pegada questionadora e confessional do conceito de gênero que ele carrega, mas
fui sendo seduzido pela linguagem poética e profundamente humana que vai se
revelando e afirmando no texto. É claro que a afirmação do parágrafo anterior
me manteve esforçando-me por praticar uma vigilância epistemológica, ainda que
saibamos dos limites desse esforço.
A
menção a um dos cinco sentidos e a mobilização dele em todo o texto é de uma
profunda sensibilidade e maturidade, em que pese a juventude de Marcos Samuel.
A predominância é absoluta das personagens
masculinas e relações entre homens. As mulheres são apenas citadas, com uma
representatividade reduzida à mãe e colegas dos ambientes estudantis.
A rígida e poderosa figura paterna é transmutada
em fragilidade depois de um evento dramático, primeiramente relatado como um
acidente que é inserido com toques de mistério, atiçando a curiosidade dos
leitores, o que só se satisfaz no final do texto. O irmão é referido como um
porto de afetos, compreensivo e cumplice. O parceiro assumido como amor idílico
se destaca quase no final da narrativa, ora com lirismo, ora com uma
objetividade que se arrisca no fio da navalha da vulgaridade. As figuras
masculinas surgem e se esvaem em desejos inicialmente contidos por barreiras
sociais e dores profundas reveladas a pleno como segredos antes guardados a
milhões de chaves, fazendo do livro um documento temporal e geográfico muito
importante para a compreensão da sociedade.
Narrando em detalhes sentimentos e atos
amorosos sem perder a perspectiva estética, Marcos Samuel Costa consegue ser
muito expressivo nessa obra que tem nítidos elementos autobiográficos, mas se
reveste de marcos psicanalíticos muito bem explorados.
A relação com o espaço vivido vem
ricamente ilustrada com detalhes da cidade de Belém e algum lugar do interior
paraense (Ponta de Pedras?), eviscerando ambientes como a casa, a escola, a
universidade, as ruas, o bairro da Terra Firme.
Quem conhece sabe o peso de uma vizinhança
literalmente tóxica em que exalam excrementos e violências humanas comuns ao
consumo e tráfico de drogas, o trabalho assalariado e as condições precárias de
vida, o burburinho, as caixas de som em elevados tons, o lixo, as oscilações da
energia clandestina em cidades em franco crescimento demográfico como é o caso
de Belém... Em tudo isso o que se destaca é o cheiro dos homens, suados,
fedidos, azedos ou banhados e cheirosos, do pai, dos irmãos, dos amantes... Na
intimidade da residência ou no ônibus lotado, os cheiros como principal dos sentidos
vão rendendo páginas e páginas que entretêm o leitor...
A estrutura do romance é estrategicamente
exposta em um primeiro bloco de 46 capítulos com menos de uma, com duas ou até
quatro laudas, tornando a leitura homeopaticamente leve, embora impondo paradas
para reflexões, pelo menos para mim que degusto letras como quem saboreia a vida
que dali emana em figuras de linguagem ou em retórica objetiva e explícita. A
leveza a que me refiro não mascara os incômodos, espantos e sentimentos
diversos que o romance cirurgicamente evoca, provoca e expõe. O último desse
bloco de capítulos é desconcertante, com o silêncio expressando mais do que
qualquer outra forma de falar da morte da... mãe. Mas o livro não se encerra
ali. Uma numeração regressiva inaugurando um segundo bloco de capítulos partindo
de 12 vai caminhar para um desfecho que inicia no velório da genitora do
personagem central, Diego, o reencontro com o pai e ajustes com o irmão Cláudio
para resolverem o fundamental: quem e como cuidarão do pai, a partir daquele
momento viúvo, fragilizado e sozinho.
É comovente o que se tem como final,
exibindo uma maturidade surpreendente na construção do enredo e na sua
finalização em que, revelando-se a verdadeira causa do estado de saúde do pai,
a adoção de um filho pelo narrador que é desde o início assumido como
homoafetivo, e a reconciliação familiar que, embora tendo os conflitos velados
durante o romance, se mantinham presentes nas entrelinhas.
Não é nenhum pouco banal que o livro tenha
sido premiado pela Imprensa Oficial do Estado do Pará. Os méritos podem ser
facilmente encontrados no estilo narrativo intimista, reflexivo, mas sem
hermetismo. Ao contrário, é muito corajoso, esclarecedor e honesto! Merece ser
lido pelo mais amplo público, para que se desfaçam as escamas do preconceito e
prejulgamentos homofóbicos que povoam e ganham força nesses tempos confusos e
de pugilatos ideológicos dualísticos e que já deveriam há muito terem sido
ultrapassados.
Marcos Samuel Costa, pelo vigor da obra
que tem exibido, terá seu reconhecimento ampliado e espero que seja em
brevíssimo tempo!
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