A quarta parte - Gutemberg Armando Diniz Guerra




 A quarta parte


Gutemberg Armando Diniz Guerra



           Uma das primeiras lições que se aprende na escola é que o corpo humano tem 3 partes principais distintas: cabeça, tronco e membros. Agora parece ou tem mesmo 4, se contarmos com o celular que se incorporou não somente ao corpo, mas à alma do ser humano, se é que ele tem esse lado que tanto nos conflita e angustia. 

Antes desse artefato ser incorporado à vida das pessoas, elas morriam por parada cardíaca ou morte cerebral, mas agora também definham e entram em falência por falta ou avaria de seus aparelhos celulares que tem funções múltiplas como as de memória, relógio, despertador, cronômetro, temporizador, telefone, correios, lanterna, computador, máquina calculadora, câmara fotográfica, dicionário, caderneta de anotações, agenda, cartão bancário, carteiras de identidade e habilitação, título de eleitor e muitas outras ligadas a funções orgânicas como a alimentação, os sentidos da visão, da audição, do tato, do cheiro e gustação.

Às doenças convencionais se acrescentaram outras cujos sintomas são a dependência do aparelho celular, hipnose celular, adoração celulósica, compulsão, fixação, vício e outras que vem sendo descobertas e vão entrando na Classificação Internacional de Doenças – CID como transtornos e distúrbios decorrentes do uso excessivo deste e outros eletrônicos.

Para os professores e orientadores educacionais das escolas e para os pais cuidadosos de seus rebentos, essa tecnologia se tornou o centro das atenções e um inimigo cruel da criação saudável. Reedita-se o mito da caverna e a realidade para os seus usuários adquire contornos que passam muito mais pelo que está escrito e projetado nas telas do que pelo que se possa ver diretamente acontecendo no mundo real. O mundo virtual visto através desse caleidoscópio mágico e novo tem se configurado não só para os jovens, mas também para os de mais idade e vivências como sendo o referencial do existir.

Ignorâncias, que antes se davam pelo não conhecimento e experimentação do mundo, agora são construídas pelas notícias falsas vindas de fontes que deveriam ser confiáveis, mas que se degradaram a ponto de servir de porto e âncora dos desavisados e vulneráveis seja pela tenra idade, seja pela falta de capacidade de discernir como se constroem as ideias, seja pelos que se pautam nas revelações dos mais idosos que deveriam ser os mais credenciados. 

Verbetes novos surgiram e se incorporaram ao vocabulário das pessoas e a dos que utilizam os mágicos aparelhinhos construtores de mentiras com cara de verdades. O pior é que desmascarar e desnudar falsas mensagens implica em gasto enorme de energia e nem sempre esse esforço serve como argumento convincente contra a ignorância instalada pelas falsidades que ganham força maior do que a dúvida que deveria mover as pessoas para a busca e confirmação da informação. 

Estranho é o poder da quarta parte, tanto para fazer o bem quanto para fazer o mal! É um instrumento que, sem que se lhe faça o uso adequado, passa a comandar o utilizador. É como um rabo a balançar o cachorro, ou uma varinha mágica que comanda o bruxo, ou ainda como um gênio a dar ordens ao seu amo.

 O mais curioso é que utilizado como uma extensão das mãos ou da cabeça, expande também os outros sentidos de seus donos, dando-lhe a sensação de ter o mundo em sua mão, ou a seus pés, ou sob o seu total e completo domínio cerebral. 

O celular é capaz de responder a muitos estímulos de perguntas sobre os mais variados assuntos e por isso é associado a uma inteligência artificial, embora não passe de uma caixa armazenadora de informações e da qual só se pode extrair o que nela se tenha posto.

Embora se saiba que todo instrumento pode servir tanto para o progresso e evolução quanto para a degradação e destruição, nem todas as pessoas sabem fazer essa distinção que fica ao livre arbítrio de cada um, inclusive os que dele não sabem fazer uso, como as crianças que vão, desde muito cedo, trocar os seus mais saudáveis afetos pela animação viciante das telinhas que lhe são postas às mãos para que eles tenham o que fazer e com o que se distrair do maravilhoso mundo que nos cerca. Sem se dar conta, eles incorporam desde cedo esse órgão que passa a ser essencial em suas vidas e na dos que lhes cercam. Quem sabe, alguém ao ler esse texto, olhe ao redor e veja que o mundo existe (ora se existe!) fora da quarta parte do seu corpo e deixe esse aparelhinho descansar mais tempo do que ele tem sido demandado!

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas